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Dying Fetus, triunvirato de agressão

Domingo é dia de descanso, mas não para todos: 12 de Novembro pintou-se de sabbath negro para quem se deslocou ao Lisboa ao Vivo (LAV), já a noite tinha estendido o seu manto. O motivo do ritual não foi de somenos importância, estando em causa o retorno dos Dying Fetus ao nosso país. A celebração em torno destes lordes do Death Metal mais sanguinário, bem acompanhados por três representantes do género nas mais suas diversas vertentes, fez-se da única forma possível: com porrada da boa.

Quatro bandas numa noite de domingo é uma dose dura de digerir, mas nem por isso esse teste de resistência serviu como dissuasor ao leal público (que, não sendo parco, não chegou nem de perto a encher o patamar térreo da sala) presente no cantinho mais pesado de Marvila. O cartaz desta Wrong Tour to Fuck With – nome premonitório – avizinhava-se de luxo, com um contingente do Commonwealth, duas bandas australianas e uma canadiana, a fazer as honras de amassar a canalha antes do espancamento final.

Se nome, logotipo e capa do último álbum Misery não deixam imediatamente claro de que se tratam os Disentomb, Jordan James não esteve com meias medidas: é Brutal Death Metal, ora porra. Portador de um vozeirão de frequências desumanas, o vocalista gorgolejou enquanto lançava feitiços de horror com as suas manápulas à medida que a restante banda soltava turbilhões. Sem se mostrar particularmente distintivo e com um som que não permitiu apreender os apontamentos do guitarrista Jake Wilkes (salvo as melodias retorcidas do novo tema Indecipherable Sermons of Gloom), o quarteto mostrou-se coeso e justificou o moshpit que se começou a formar desde cedo. Fica na memória a performance demolidora de Henri Sison, espécime físico invejável que passou ao lado de uma carreira de sucesso enquanto jogador de rugby do seu país e que por isso se vinga sem dó nem piedade na sua bateria.

Outro propósito inteiramente distinto motiva os Beyond Creation. Sem Satã ou Cthulhu como mestres, o quarteto canadiano presta-se a questões do foro filosófico-científico e para acompanhar a desenvoltura da temática toca Death Metal tão técnico quanto humanamente possível. Com uma postura mais descomprometida, atacaram temas como Neurotical Transmissions ou Earthborn Evolution com a descontração de quem abotoa uma camisa. Bateria a tocar tempos quase impossíveis, guitarras e baixo sem cabeça e desenhados para debitar notas alucinantes e sweeps à velocidade da luz – já se sabe que estas coisas do tech-death não são feitas para ficar na cabeça, mas o mero visionamento da performance chega para ficar com o queixo caído (os préstimos do baixista Hugo Doyon-Karout, então, roçam o transcendental). No fim, Coexistence soltou as feras com o seu ritmo mais rasgado antes de acabar em tom elegíaco e Fundamental Process encerrou em altas.

Enquanto este espetáculo decorria, o baixista e o vocalista dos Psycroptic aproveitaram para fazer flexões no patamar de cima do LAV, possivelmente necessitados de despender energia em excesso, o que preveria um espetáculo intenso. Assim foi. Curiosamente ambos a substituírem os membros originais da banda para esta tour, Todd Stern no baixo (que, coitado, nem se ouviu) e Lochlan Watt ao microfone juntaram-se aos irmãos Haley para fulminar com uma performance a abrir. Técnicos mais pela intensidade com que tocam do que pela aproximação ao prog, estes diabos da Tasmânia têm, de álbum para álbum, feito um namoriscar perigoso àquele estilo corriqueiro à americana (Lamb of God e afins) com toques de Melodeath, mas não deixa de ser um deleite ver como Joe Haley saca riff suculento um atrás do outro. Sem ter particular valência distintiva, Watt compensou com a vontade com que berrou desde Echoes to Come a abrir até Cold a terminar, num alinhamento composto quase exclusivamente por material recente mas que teve a oportunidade de recuperar a voracidade de Ob(Servant) e de The Color of Sleep. Kudos para a tshirt de Watt.

Enfim, aproximava-se finalmente o momento de receber os Dying Fetus, três anos depois de terem visitado o Hard Club no Porto. Não é prática recomendável avaliar uma banda pela postura do seu vocalista, mas quanto ao trio nova-iorquino – que, diga-se foi a banda mais devastadora da noite não obstante ser também a que menos elementos – fazemos uma excepção. John Gallager pode não ser o maior ou mais encorpado sujeito, mas aquela cara de poucos amigos deixa poucas dúvidas sobre quem emergiria vitorioso, com mais ou menos um corte na cara, numa rixa de bar. O que se pretende dizer é que os Dying Fetus são intimidantes – ter aquela montanha de baixista chamada Sean Bailey ajuda – e que isso explica porque é que se podem dar ao luxo de lançar um álbum chamado Wrong One to Fuck With em 2017. Há um lado trocista que não escondem – maravilhosas a chamada e retirada do palco com os hinos que são Hearts on Fire e Celebration, respectivamente – mas estes são os gajos que se riem contigo até subitamente fazerem cara séria, altura em que borras as cuecas.

Oleados na perfeição, os dois membros dividem as tarefas vocais horrorosas irmãmente enquanto Trey Williams sujeita a sua bateria a um espancamento. O seu alinhamento versou principalmente o álbum acima mencionado e seu antecessor, Reign Supreme, com temas mais antigos a espaços, mas no fundo já se sabe para o que se vai com os Dying Fetus. Parece que tudo o que vem de Nova Iorque tem um groove desmesurado, está na água do Hudson ou assim, e é quando a banda faz esses encaixes com balanço que atinge o seu apogeu, como em Grotesque Impalement, no breakdown de Seething with Disdain ou em In The Trenches, que muito deve ao Hardcore dessa mítica cidade.

Escusado será dizer que, se o público até aqui já se tinha mostrado ávido por sangue, a banda agiu como se tivesse a atirar uma galinha viva para uma matilha de cães esfomeados (uma das frases do ano: “I wanna see a circlepit, Stevie Wonder style”). Para o final, a banda fingiu mal e porcamente que ia terminar com Praise the Lord (Opium of the Masses), por si só seria o garante de uma noite bem fechada. Mas claro que não, havia uma malha que não podia faltar. Pretendida como uma provocação à indústria musical e infame como poucas no mundo do Death Metal, Kill Your Mother/Rape Your Dog provocou um último frenesim selvático. Apesar ter o seu quê de hilariante ver uma banda em 2017 a mandar as Spice Girls à merda, a mensagem não se perdeu – os Dying Fetus ainda vão continuar por aí a desancar o vosso conceito de normalidade, com um sorrisinho malévolo.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Daniel Jesus
Promotor – Prime Artists