“Tempus fugit, aproveita” tinha eu na primeira página do caderno que inaugurei para continuar o meu relato de Coura. Tinha sido uma oferta de um amigo há uns anos atrás. Engraçada a ligação com tudo o que me apetece escrever sobre a efemeridade e fugacidade dos dias.
A mesma sensação anual de acordar com a contraposição do prazer com a ansiedade do fim. Mas não é isso que acontece quando aproveitamos mesmo algo de corpo e alma?
O último e melhor dia de festival acordara e com ele sempre o sabor agridoce de olhar para trás e ver o quão bom está a ser mas que não irá durar mais.
Antes da última entrada no recinto dos encantos, ainda havia a conferência de imprensa com o, já habitual, balanço da edição. Foi na Zona Vip do festival, entre soundchecks, que nos reunimos com João Carvalho, Catarina Soares (Ritmos, Lda.) e Leonor Dias (Vodafone). Leonor afirma que foi uma edição fiel ao festival e que se manteve o objetivo da procura de talentos. Existiu mais conectividade e cobertura 5G: a Vodafone reforçou rede móvel em todo o festival, houve novas ativações nas margens do Rio Coura, como a Roda Happy Days, o chef que cozinhava para os campistas, entre outras coisas e que os resultados de um inquérito feito revelaram que 60% das pessoas tinham ido pela primeira vez, 74% afirmavam ser um festival do coração e 85% ia voltar no ano seguinte. Conclui com a renovação da parceria da Vodafone com o festival.
Já João Carvalho começou por afirmar que o Vodafone Paredes de Coura é um festival que parece que não existe mas que o bom é que existe mesmo! Há sempre uma forma muito especial de como toda a gente em Coura, tanto entre o público como em cima do palco e isso nota-se e transmite-se. É um festival diferente, de melómanos, de sorrisos, de ternura. Afirmou que continua com o mesmo entusiasmo de quando começou o festival e que foi uma edição que contou, no total, com cerca de 100 mil pessoas.
O concerto revelação foi Model/Actriz e as expectativas estavam altas para a melhor banda do festival, os Fontaines DC.
O Vodafone Paredes de Coura está de regresso de 13 a 16 de Agosto de 2025 e já há uma confirmação grande.
A última maratona de concertos começava com um nível elevado com o excêntrico e insano Baxter Dury no palco Vodafone. A sonoridade sugeria um suspense nocturno com cheiro a libertinagem e vida boémia que poderia servir de banda sonora de uma série como a Vinyl ou a The Deuce. A mistura entre new wave, indie, electrónica e extremo sensualismo rapidamente agarrou o público que foi aumentando de tamanho. Parar não era possível, ou de forma mais ritmada ou menos, a música levava-nos ao seu lado. Baxter declamava e a rapariga dos back vocals cantava com uma voz que tinha toques de purpurina. Não fosse a qualidade musical estar no topo, ainda temos um animal de palco cheio de vontade de nos devorar e abanar até não poder mais. Concerto impressionante para dar início à noite.
De seguida, uma banda para a qual não dediquei muito tempo. Falta-me vagar e disposição mentais para absorver aquele punk rock carregado de skate tipicamente americano que tem demasiada excitação para ser classificado de punk e pouca garra para ser considerado rock.
Falo dos Hotline TNT que apesar de cativantes e em modo festivo, não me conseguiram manter no palco Yorn.
Era a terceira vez que via Slowdive, todas no mesmo local e, acredito que se os vir noutro sítio não vou conseguir sentir o mesmo. Slowdive carregam aquela melancolia densa e lenta do shoegaze. Normalmente, o melhor a fazer é uma de duas coisas: ou entrar em modo transe hipnótico deixando-nos absorver pelas imagens que projectam ou, simplesmente fechar os olhos e perdermo-nos na nossa própria imagética, seja ela com formas ou imperceptível. As faixas são longas, corpulentas, distorcidas e agarram-se a nós para nos aconchegar e guiar na viagem por vários locais. As vozes de Rachel e Neil casam na perfeição e quase que segredam aos nossos ouvidos histórias de vida e as direções dos caminhos que temos de percorrer na viagem. O cenário que os cerca, a eles e a nós é o ideal para que possamos ser todos absorvidos a uma alma só e por isso é que este concerto se torna sempre num momento místico e quase irreal.
A serenidade mantinha-se em modo apaziguante com o concerto seguinte. Apesar de estilos diferentes, o momento zen e o abraço conjunto continuou encaminhando-nos para um sonho bonito pintado a verdes vivos e azuis cristalinos. O duo londrino Still Corners faz-se acompanhar de um baterista e oferecia um beat suave e voluptuosa bem ao jeito de uma dream pop quente e solarenga com uma voz profunda e sincera. A elegância fazia-se sentir tanto neles como pelo som que nos tocava que, por vezes, quase nos despertavam com uns riffs mais audazes que nos colocavam no meio de um bosque com lago algures em Twin Peaks em época de verão. Tessa distribuiu rosas pelo público e tornou o cenário ainda mais encantador e puro. Foi mais um concerto de momento único e inesquecível de Coura.
Glasgow Eyes é um dos discos do ano. Efetivamente revelou-se um excelente regresso dos The Jesus and Mary Chain. Foi por aqui que eles começaram mal entraram em palco e provaram que o tempo não passa por eles. Pelo menos não parece. Apesar deste disco estar mais limpo e melódico, não dispensam a sujidade das guitarras e as distorções, elevando ao alto todos os significados e variantes de rock. O shoegaze também se mantém vivo mas menos intenso que noutras viagens já vividas esta noite. Os escoceses proporcionaram-nos um momento de puro regalo com a mestria com que cresceram e chegaram aqui mantendo a pureza e simplicidade dos anos 80. Aqueles da libertação e do arrojo. A esposa de Jim cantou com ele a olhar-lhe nos olhos num momento de pura ternura e emoção e depois Rachel dos Slowdive ofereceu back vocals na mítica “Just Like Honey”. De certeza que não veremos e sentimos um destes tão cedo!
Mais uma ida ao palco Yorn para conhecer Superchunk. Começaram logo a rasgar com um instrumental cheio de garra e bem composto. Um pouco mais robustos que os Hotline mas com uma base com laivos de skate rock. A voz é um pouco aguda para acompanhar a densidade sonora, mas nota-se que têm a energia e maturidade certas para conseguir prender uma plateia.
Um dos concertos mais aguardados da noite viria de seguida e talvez tenha servido para tirar algumas teimas a muitos espectadores. Indubitavelmente os Fontaines DC sabem! Sabem estar, sabem fazer, sabem compor, sabem dizer, sabem tocar, sabem impressionar. Tenho lido e ouvido muito que será uma banda que vai vingar e crescer muito. Se isso acontecer, espero que não se deixem perder, como acontece a muitos. Mas, a verdade, é que o que assistimos naquela hora e dez foi catártico. Foi uma limpeza de alma, que saiu cheia de satisfação. O post punk com que começaram a carreira foi-se diluindo em muitos géneros musicais e neste momento esta banda da Irlanda carrega consigo uma panóplia de gostos e texturas que consegue conjugar e interligar com uma mestria e equilibrio de sábio. Talvez porque lhes escorre pelos poros. Talvez porque são, efetivamente, genuínos. E isso sente-se. Sente-se, absorve-se, mastiga-se e incorpora-se em nós. Temos nostalgia, melancolia e a energia do rock. Temos poesia, temos amor, desamor, guerra e revolta. Nota-se que querem chegar a mais pessoas e nota-se de igual modo que, ao contrário de outros, não o fazem em forma de produto. É bom quando não precisas de perder identidade para absorver parte do mundo! A maturidade por vezes tem destas coisas, leva-nos a sítios com os quais sonhamos mas nunca pensamos chegar um dia. Um concerto de Fontaines DC é imprevisível, ritmado, emotivo, sujo, denso, intenso, negro, belo, excêntrico, elegante e envolvente! Imaginem sentir isto tudo ao mesmo tempo e não saber o que fazer? Pode ser desconfortável para o espectador, mas é aquele desconforto bom que cativa ainda mais. Apesar da fraca comunicação com o público, não me senti afastada deles e espero nunca sentir!
Depois da sova, veio o momento mais mágico do festival, aquele onde passam imagens em resumo de todos os dias e que termina em forma de festa com confetis, abraços gigantes e muito amor. Antes de chegarmos ao clássico “All My Friends” que tão bem simboliza o momento, ouvimos “Sharing The Night Together” de Dr. Hook e “Girl” de L’Imperactrice.
Mas não acabava aí!! ainda havia que desbravar uma estrada cheia de rebeldia e caos de nome Destroy Boys. Numa espécie de Hole mas em formato mais (ainda) assanhado e esganiçado, as duas vocalistas deram tudo o que tinham e nós aceitámos de braços abertos. Foi um concerto explosivo, electrizante e extremamente energético. Não nos era permitido parar perante aquele ritmo alucinante que escorria punk e garage em versão feminino. Conseguiram gerar a desordem entre o público que apenas se estava a deixar ir. Foi uma boa surpresa e forma de despedida desta grandiosa noite.
A verdade é que, efectivamente, este é um festival diferente de todos os outros. Apesar de ter muitas pessoas que vão pelo ambiente e localização belíssima e quase bucólica (como as pessoas que fazem crowdsurfing em todos os concertos, mesmo os que não chamam a isso), há muitos amantes de música, há muitas pessoas a cantar em todos os concertos e, isso, é uma sensação inestimável. Há uma energia que se sente e que irradia pelo ar durante esta semana naquela pacata vila que é quase indescritível. Só quem vai percebe e sente. E quem vai, volta sempre! Tal como nós!
Uma ressalva para mais uma boa quantidade de excelentes concertos e, o melhor de Coura, as descobertas musicais!
Esperemos que para o ano os horários estejam de volta ao normal com a parte mais electrónica no final da noite e os concertos a horas mais antecipadas, para que possamos não nos arrepender e ter perdido um concerto por não ter aguentado mais.
Tal como tenho dito, o tempo corre e, por isso, até já Coura!
GALERIAS DOS RESTANTES CONCERTOS DO DIA
Ambiente
Valter Lobo
Palehound
Hurray For The Riff Raff
