A norte-americana Sarah McCoy despediu-se ontem em Lisboa da digressão que contou com 4 atuações no Norte e no Centro do país, Bragança, Covilhã, Pombal e ontem em Lisboa. A sacerdotisa de New Orleães, que não alinha em nenhuma catalogação musical, pulverizou a sala do Maria Matos com demónios e arrufes humorísticos. Remexeu as profundezas selvagens do seu Eu, e amplificou a imensidão da sua voz sob a penumbra de High Priestess, o seu segundo e mais recente álbum de originais. Apesar da viragem de sonoridades, onde sintetizadores se juntam neste álbum ao piano, pois em Blood Siren (editado em 2019) o piano tem praticamente exclusividade, e ontem à noite foi mesmo só o piano e um copo de vinho tinto que acompanharam a intensidade de Sarah.
Sob a luminosidade de humildes focos vermelhos, Sarah fletiu as pernas e sentou-se sobre as meias de renda pretas e arrancou das vísceras um “I’m Here” à capela. Agradeceu as palmas (que foram muitas e alvo de piada no final) e ao piano ficou quase duas horas intercalando as canções dos dois álbuns, entre goles de vinho tinto e um humor incontrolável. Visivelmente contente por estar em Portugal, pediu desculpa por não saber falar português mas logo em seguida fez algumas piadas em francês (vive em Paris), a propósito do tema La Fenêtre composição do seu último álbum. E numa intensidade envolvente com o piano, o qual descreve como uma experiência metafórica da própria vida, continuou em High Priestess e interpretou “Sometimes you lose” com muito mais profundidade do que na versão gravada.
“Não sou nenhum sin (pecado), sou mesmo uma mulher”, que se sente confusa, com receios e dúvidas do que foi e do que poderá vir a ser. Abanos de cabeça, que soltavam os longos cabelos e que tapavam as pinturas azuis do contorno dos olhos, “Take it all”. Uma projeção de voz incrível com uma mistura de energia enfurecida e uma serenidade delicada. Um espernear descompassado, como se o sofrimento também fosse descontinuo (e é!). Num humor meio sarcástico, trauteia uma “Avé maria” e pergunta se Jesus terá transformado a água em vinho tinto ou branco (risos). “I miss her”, canção com uma sonoridade tranquila no disco, mas que ao vivo consegue dar-lhe uma outra roupagem e elevar o ritmo puxando muito mais pela voz em, “I ever see her again? I miss her Will I ever see her again?”
Blood Siren continuou com os temas “Red hot” e “Boogieman”, que sairam lançados depois de brincar com a palavra Boogieman (bicho-papão) o monstro das crianças (como sendo ela própria). Mais uma gargalhadas contagiantes e audíveis, provocando-lhe algum descontrolo quando a certa altura bateu na cara e disse “Stop Sarah!”. Já recomposta apresentou o tema seguinte, com um aviso de que os bem parecidos (good looking) nem sempre são o que aparentam ser, e mais uma vez saiu lá das entranhas “When your lies make me go blind” (Go blind). A versatilidade humorística de Sarah e a sinceridade na partilha, fez com que a sentissemos como a nossa nova amiga. Conseguiu, ao longo do espectáculo, que experienciássemos várias emoções e “Mammas Song” foi a apoteose da noite. Pela letra, pelas confidencias, pelo sofrimento honesto na voz quando cantou “Well, I don’t like who I am / Who I’ve been / Or who I’ll be / And I know my reflection/ I am a monster / I am the beast / Dear Mamma, there’s no one left but you to pray / You to pray for me / Pray for me /Pray for me”.
Dois momentos de fúria com as teclas do piano, em “Long way home” e “Show’s over” mesmo antes do encore. No regresso, contou-nos que o tema “You’re not alone” foi escrito para a sua melhor amiga, quando esta atravessava um momento complicado na sua vida. E foi com o tema “Fearless” e com os movimentos enérgicos das suas mãos, que Sarah deixou o palco.
Uma recordação de “um sonho” num “segmento selvagem e brilhante”, é assim que Sarah se define. Apesar de não nos ter estragado as almas, porque a ternura também lá esteve, foram duas horas deliciosamente desconcertantes.
