Backstage

Montalvor e a sua catarse num disco

19h30 e estamos no Cais do Sodré. Os planos originais de fazer uma entrevista com o Montalvor são barrados pelo bar combinado estar fechado à segunda. Mas como há fartura de bares nas imediações acabamos num pub. Com o livro “O Homem no Castelo Alto” na mão, o músico partilha o passado, presente e futuro. O álbum, The Highway of Regret, é um curativo exposto publicamente e um desafio em partilhar medos. Para o futuro reserva-se a possibilidade de divulgar o projecto no circuito. Por agora, entre dois dedos de conversa e uma cerveja, esta foi a conversa que tivemos com Montalvor.

Música em DX – Começaste a escrever durante a tua adolescência. Na altura, quais eram as tuas referências? O que é que ouvias na altura?

Montalvor – Na altura, eu ainda ouvia coisas. [risos] Entretanto deixei-me disso. Sempre ouvi Pink Floyd, foi uma influência gigante lá em casa. Roger Waters… Ouvia de tudo o que se passava da música nacional. Era um pouco por aí. Ah! Tive uma fase que ouvia muito The Cure. Mas nada tem a ver com o que eu faço agora. A nível de escrita, eu gosto muito de analogias e escrita, escrita… letras, se calhar o Bob Dylan e [Leonard] Cohen também. Do género: aquele gajo escreve tão bem! Se calhar, inconscientemente, acaba por ser a fórmula que eu procuro. Mas não muito consciente.

20190121 - Entrevista - Ricardo Montalvor @ Cais do Sodré

MDX – Como é que se dá esta queda para a música? Deram-te algum instrumento quando eras novo?

Montalvor – Opá, é uma história um pouco parva, mas foi assim. Eu fui a um casting de liceu. Imagina, estão a formar uma banda e eu quero entrar nisso. Já estava tudo planeado, mas ainda assim forcei a cena. Fui lá, cantei e os gajos não gostaram. E eu pensei: não é possível, eu canto no banho e não canto assim tão mal. Eu consigo cantar afinado. Não aceitei isso e o meu irmão tinha uma guitarra dos tempos da adolescência, que tinha ficado lá a apanhar pó. Eu pus umas cordas, ele tinha lá um caderninho com acordes e comecei a aprender as Dunas desta vida, o Wish You Where Here… e por aí fora. E eu comecei a escrever logo canções. E era a minha forma de fazer. Fiz sozinho. E depois, na altura, isto para aí em 89, 90, houve uma banda lá no liceu que estava à procura de um vocalista e a cena aconteceu. Tudo acontecia no liceu.

MDX – E que estilo de música tocavam? Não era o que tocas agora…

Montalvor – Não… não. Nada. Era uma tipo “música moderna portuguesa“. Na altura era o estilo Rádio Macau e Delfins. Era o que dava na altura.

MDX – Como é que chegas ao estilo actual?

Montalvor – Depois fui ter projectos… Fracassados. [risos] Uns mais fracassados que outros. Entretanto há uma banda que tenho com o Vasco Duarte, e o resto do pessoal dos Kalashnikov, que era os Uruguai. E não sei explicar o porquê, na altura tinha curiosidade, comprei um slide e comecei a tocar com slide. E não sei explicar a cena que sai. E tudo aquilo que tocava, ia de alguma forma parar com este feeling. E nunca mais fui o mesmo. [risos]

MDX – Já nessa altura pensavas em tocar sozinho ou te vias sempre com um grupo?

Montalvor – Nessa altura via-me só como um bom guitarrista, só. Mesmo quando escrevia, escrevia para a banda. E nunca era a minha pretensão tocar nada. Depois o que aconteceu é que vejo sem banda nenhuma, começo a escrever umas coisas, numa altura que é o que veio dar origem a este disco, numa altura difícil da minha vida. Uma altura de rutura, luto e não sei o quê. E essas merdas são boas para escrever. Agora estou bem e não sai nada! [risos] Comecei a escrever umas cenas… o Vasquinho achou que aquilo tinha interesse começarmos a gravar umas coisas na casa dele. E sem dar por iso, tens um álbum.

MDX – É um registo autobiográfico.

Montalvor – Sim. Completamente.

MDX – Não tens medo em expor a tua vida no palco?

Montalvor – Tenho claro. Neste momento estou a ter! [risos] Sempre que se fala um pouco nisto, tenho sempre um pouco de medo. De aparecer isto, de aparecer aquilo. E até com a própria banda.

MDX – Como te sentes a tocar ao vivo?

Montalvor – Não penso muito nisso. Não sei. Sinto-me tão bem. Tenho muito orgulho no puzzle que está no fim. Tens várias ideias soltas e vais juntando. Criei um conceito estético, uma história. O disco é uma história. Aliás, tem uma versão romance. No lançamento, saiu uma latinha de cinema, que dentro tem um guião. Ou seja, tentei depois, reescrevendo aqui, aparando ali, criar um todo. Uma história em que realmente reparas que criaste uma história com aquela personagem. Que tu começas a perceber o que é que aconteceu com aquela personagem. Aliás, na sinopse tens toda a informação. Depois tens os vários estágios de recuperação.

O espectáculo que tenho, é todo feito através de vídeo. É um filme. E há uma parte que é um interlúdio, que se chama Cynicall Diagnosis, então tu vês a minha cara a alucinar, a falar com voz de mulher, a dizer: Ninguém acaba comigo! Sou uma princesa! Tu vais arrepender disto. E eu pensei assim: oh meu deus… [risos] agora já nem vou convidar ninguém que conheça. Isto é mau demais… Mas depois, é o que é.

MDX – É uma catarse, portanto.

Montalvor – Sim, completamente. Mas depois é o que é. Comum a toda a gente. Todos nós passamos por coisas assim, a determinada altura da vida.

MDX – E qualquer um se pode familiarizar.

Montalvor – Eu acho que é por aí. A exposição faz parte desta obra. Não havia como fazer a metade.

MDX – Tu tens uma forte componente visual no teu trabalho, tanto ao vivo como, obviamente, com os videoclipes. E tem um aspecto, diria eu, muito próximo ao Sin City.

Montalvor – Sim. Estás a falar dos Seven Witches?

MDX – Sim. Mas tens um passado ligado à realização, não é?

Montalvor – Sim. De forma amadora, mas podemos dizer que sim.

MDX – Foi um juntar o melhor de dois mundos.

Montalvor – Eu sou um bocado “faz tudo“. Também faço produção. Por exemplo, Lamina. A banda. Eles têm um videoclipe e fui eu que fiz os efeitos especiais. Porquê? Porque no Halloween costumo fazer umas caracterizações com sangue e não sei quê. E o Filipe Homem Fonseca só disse: “Bora fazer“. E ok, as cenas acontecem. Ali, é a mesma coisa. Tenho amigos na área, escrevo uma história. Não sei se viram o Movin’ On. Mas tem um Cadillac. No Seven Witches a ideia foi sempre fazer em animação, na altura era outro carro, mas agora surge um amigo que é coleccionador de carros. E as pessoas perguntam onde arranjei aquele carro. Foi ao contrário! Eu tinha o carro e escrevi tudo à volta para poder usar o carro. Aquilo é que era o objectivo mais fixe que tinha. O carro original não era esse, mas mudámos para aproveitar a cena toda. E sim, é um pouco isso. Fazer a realização, a caracterização. Também esta cena da animação também tive de fazer. Faço uns desenhos, mas nunca tinha feito nada tão intenso. É uma parceria muito boa com o Jorge Coelho, que é um desenhador extraordinário que trabalha na Marvel.

MDX – Uma coisa que partilhamos é o medo de sangue. Aliás, a primeira vez que vi sangue, tombei logo. Estes vídeos são uma espécie de luta contra esse medo.

Montalvor – Sim, mas acho que é mais brincar. Posso aventurar porque é a fingir. Nunca pensei muito nisso, mas acho que é mais assim. O sangue faz-me confusão, mas é ridículo. Uma vez fui ver o Hannibal, e a cena onde ele cozinha os miolos… Eu fui ver a cena sozinho. A primeira vez que vi, saí logo da sala de cinema, só para terem uma ideia. Aquilo dispara-me uma coisa química que eu começo a sentir mal. Mas um dia estava em casa, pensei assim: “Faz-te um homem!” Sozinho! E comecei a sentir bué mal. Mesmo quando é a fingir eu sinto-me muito mal. Há um filme que é o Rush, que é de Fórmula 1. Quando o gajo tá todo queimado, a tirar as ligaduras, o Niki Lauda, eu estava com o Vasquinho, e eu tive de colocar a cabeça entre as pernas.

MDX – Até eu quando vi a cena de enfiar o tubo na garganta dele tive de saltar um minuto no filme.

Montalvor – É, eu não quero ver isso! E eu não quero ver isso. Filmes com sangue aos litros passo. Então eu acho que talvez, inconscientemente, como eu estou a fazer, consigo provocar aos outros que aquilo que provoca em mim. Como sei que é forte… E eu curto aquilo. Tem muito sangue, mas eu curto aquilo. Adoro Tarantino, por exemplo. Tu tens os Inglorious Bastards, eu vi a cena do gajo a dar com o bastão na cabeça do outro e não sei explicar… [risos] Ainda me arrepia. E aquilo é bué fácil de fazer. Quando vais trabalhar com sangue, tens um sangue diferente consoante aquilo que queres fazer. Aqui consigo ligar com isso.

MDX – Então toda a concretização à volta do álbum é um desafio aos teus desafios, medos e partilhá-los. Três anos foram o tempo suficiente e certo para criares?

Montalvor – Eu acho que sim. Demorou quase quatro, por vários motivos. Há coisas que se procrastinaram da minha parte. Houve coisas da própria editora, que tinha haver com a disponibilidade do Makosch e eu não quis de maneira nenhuma ser chato. Deixei a coisa fluir, dentro da capacidade dele. E aproveitei isso a meu favor. Vou criar a meu favor o que consigo. Fui desenvolvendo a ideia. Desde que aconteceu a catástrofe e estás na base da construção da casa, há ali uma parte de chafurdar, de assentar tijolo, que é a parte mais suja, mas há uma parte que estás fixe, bem e lidas bem com aquilo que fizeste, estás na parte dos acabamentos. Estás a colocar os puxadores das portas, são pormenores que fazem toda a diferença. O disco teve os estágios todos. Podia ter sido feito em menos tempo, mas ainda bem que tive essa oportunidade de fazê-lo assim. Se tivesse feito em dois anos, se calhar tinha forjado a parte que está tudo bem. Estava a fazê-lo e ainda não estava tudo bem.

20190121 - Entrevista - Ricardo Montalvor @ Cais do Sodré

MDX – E agora está tudo bem?

Montalvor – Agora tudo ótimo.

MDX – Como estamos ainda no começo do ano, que expectativas tens para este álbum e 2019?

Montalvor – Gostava de o dar a conhecer um pouco por aí, por o álbum na estrada. Nem sempre vai ser possível fazer naquele formato de tocarmos na íntegra, tal e qual como é o disco. Com os interlúdios mais curtos. Mas nem sempre vai ser possível, porque nem todas as casas do circuito onde eu toco, que é mais underground, não têm condições de projecção de vídeo, etc. Teremos de adaptar às condições como elas são. Mas gostava que as pessoas conhecessem o disco. Isto é uma partilha. Orgulho-me do que foi feito e acho que é interessante. Temos muita oferta hoje em dia, eu posso dizer que criei a press release, que é uma caixa de cinema com um pedaço de estrada, feita em esferovite com as riscas, com um guião. E eu sei a imprensa olhou com bons olhos aquilo. Mas será que ouviram o cd? Sei que devagarinho mas vamos fazendo alguma divulgação. É um primeiro disco não posso esperar muito mais. Tudo o que vier é lucro.