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Lisboa recebeu Bob Dylan e agradeceu

O aviso de proibição de captação de imagens e aparelhos que pudessem perturbar o espectáculo, foi ouvido minutos antes das luzes se recolherem. A sala Altice Arena esteve esgotada, com uma densa assistência intergeracional onde se sentia que os mais jovens partilhavam a mesma expectativa dos mais velhos. Robert Allen Zimmerman, nascido a 24 de maio de 1941 em Duluth no estado de Minnesota (EUA), iniciou no passado dia 22 de março em Lisboa mais uma digressão europeia. Lançou o seu mais recente trabalho discográfico Triplicate, em Março de 2017.

Cinco minutos após a hora marcada, Bob Dylan e cinco magníficos músicos disseminaram as sementes do Memphis Blues  durante praticamente duas intensas horas. Aos 76 anos o galardoado prémio Nobel da Literatura, deu cartas aos cépticos velhos do Restelo que remetem a entidade Dylan a uma simples referência temporal. Fatos elegantes dos músicos, onde as camisas, calças e os chapéus negros intercalavam com o creme discreto dos blazers e da camisa de Dylan. Indumentária serigráfica perfeita, onde a escolha das luzes simples e discretas completavam o acolhedor cenário vintage.

It ain´t me babe (Bootleg, 1965) segundo tema da noite num registo jazzístico dos anos 50, voz limpa e arrastada o suficiente para sentirmos Bob Dylan quente e efusivo no conforto do seu piano. Levantou-se momentaneamente, mas não para agradecer ou cumprimentar os milhares que o veneravam naquela sala. Provavelmente para esticar as pernas que se manteriam dobradas praticamente todo o concerto. Sem pausas entre as músicas, conseguíamos apenas ver as luzes ténues das pautas sob os instrumentos e, numa espécie de produção altamente sincronizada, prosseguiram com uma qualidade de som irrepreensível. Num sussurrar romântico delicioso, sob as luzes sumidas de candeeiros de rua numa Nova York sombria e nostálgica, Simple Twist of Fate (Blood on The Traks, 1975). Os instrumentos de cordas dominaram os arranjos, ora entrando o violino e saindo as teclas, ora saindo a guitarra e entrando o contrabaixo. Summer days (Love and Theft, 2001) começou ainda sem luz num violino que se propagou entre o blues e a folk. Ruas solarengas, empoeiradas pelo ritmo americano, riffs da guitarra ritmo, numa entrada arrojada do Rock´n Roll destemido. “(…) something it´s going on.” .

Primeira entusiasta reacção do público, às primeiras palavras roucas e arrastadas de Make you Feel My Love (Time of Out of Mind, 1997). Ao longo do tema, encaixou a nitidez do grave, e as palavras saíram com a clareza necessária para dar sentido ao poema. Dylan não trocou o piano pela guitarra uma única vez e, demonstrou que são mesmo as teclas que o disciplinam nas músicas e que dão o espaço aos incríveis guitarristas para brilharem, Honesty with me (Love and Theft, 2001) foi disso exemplo.

Momentos altos, em que o contrabaixo entrou em diálogo com a guitarra enquanto Dylan batia nas teclas com precisão, fazendo acompanhar com a cabeça movimentos repetitivos. Ambiente quente, onde o castanho realçava o laranja num cenário perfeito.  Pay in Blood (Tempest, 2012) arrancou com um solo de guitarra, Dylan cantou a história num falar mais intenso. Foi subindo ao longo do tema, musicando a voz e dando aos acordes uma rouquidão arrepiada. Agudos cristalinos que lhe saíam das entranhas, sem percalços ou deslizes. Sem interrupções seguiram o baile  e no palco foi projectado um céu estrelado para Soon After Midnight (Tempest, 2012). As guitarras harmoniosamente alinhadas com o piano e o com o contrabaixo, puxavam pelo bandolim que dedilhava as cordas de uma forma magnífica. Desolation Row (Highway 61 Revisited, 1965).

Bob Dylan tem a capacidade única de declamar cantando. Contador de histórias de vidas banais mas que enfatiza poeticamente num tom de voz que, sendo por vezes monocórdico, nunca cansa. Surpreende em cada verso, em cada refrão, num grave que vibra no coração, Spirit on the Water (Modern Times, 2006). Já a caminhar para o final, o entusiasmo de Bob Dylan foi notório na brilhante interpretação da banda (destaque para a bateria) em Thunder on the Mountain (Modern Times, 2006), um momento apoteótico de puríssimo Rock n´Roll! Finalmente Dylan saiu do piano, dirigiu-se para meio do palco e cantou Why Try to Change me Now (Shadows in the Night, 2015). Regressou ao piano e ainda ouvimos Love sick (Time Out of Mind, 1997) antes do encore. Para os fãs mais saudosistas e que esperavam um alinhamento dos hits de Dylan, restou-lhes  Blowin’in The Wind e Ballad of a Thin Man, totalmente reinventadas e quase irreconhecíveis.

Bob Dylan e os seus brilhantes músicos deram-nos uma noite magnífica, e muito provavelmente irrepetuível. O som da sala Altice Arena está finalmente digno de músicos desta dimensão, não tendo desapontando em nenhum momento a qualidade dos mesmos. Para aqueles que estavam à espera de sorrisos simpáticos e agradecimentos calorosos do norte-americano, não os tiveram. Mas muito honestamente, não fizeram falta.

Músicos: Tony Garnier, Stu Kimball, George Receli, Donnie Herron e Charlie Herron.

Texto – Carla Sancho