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Crystal Castles e a restauração de um (outrora) fragmentado palácio de cristal

Os Crystal Castles já não são a banda que eram”. Sobre esta afirmação poucos podem dizer o contrário. Não a proferimos apenas com base na atual formação da dupla, mas sim depois de todo o tumulto que se viveu nos anos de 2014 e 2015, que mancharam um pouco a imagem de Ethan Kath; de um modo geral e sem nos estendermos em demasia, pois qualquer fã de Crystal Castles que se preze já ouviu esta história de trás para a frente, Alice Glass, a faceta da dupla, decidiu abandonar o projeto por alegadas violências de teor físico e psicológico por parte do seu parceiro no crime. Além destas, revelou também que os seus tempos enquanto frontwoman tinham sido tempos miseráveis devido a mil e um acontecimentos fora do palco com o seu colega, confessando que a sua voz nunca se fez sentir e que agora sim, estava livre.

Dando continuidade ao projeto que desde o primeiro minuto fora seu, Ethan Kath rapidamente arranjou uma substituta de peso, de nome Edith Frances, e tentou levantar a poeira que jazia no nome da banda. Juntos deram a conhecer “Frail” e “Deicide”, em jeito de antecipação para o seu novo disco Amnesty (I) e com o desejo subliminar de cativar os seus fãs de antigamente com a fórmula de sempre: um electropunk capaz de desencadear sonoridades caóticas e frenéticas. Com o lançamento do primeiro longa-duração D.A. (Depois de Alice), múltiplos elogios foram chegando e aplaudindo a forma como os temas estavam mais maduros e envolventes, com grandes salvas para a performance de Edith.

E foi então que chegámos ao dia 8 de dezembro, para presenciar a segunda vida dos Crystal Castles. Não os víamos por terras lusitanas desde o ano de 2013, em que tocaram tanto no agora extinto Armázem F e no palco Heineken do aí Optimus Alive, mas notava-se logo que a adesão a este concerto não seria tão expressiva como nas últimas duas passagens por cá, isto com base na pequena fila que se verificava à porta da sala minutos antes de as portas abrirem – claro que as t-shirts da dupla foram a indumentária de eleição dos garotos de 14 e 15 anos, assim como os chokers e piercings no septum.

Já dentro do Paradise Garage e depois de umas aquisições de última hora na banca do merchandising, a sala lá que se foi compondo, estando já bem preenchida perto das nove da noite. Como música de fundo, o Unknown Pleasures de Joy Division rodava de uma ponta à outra, certamente outra das bandas de eleição de um público predominantemente adolescente. Enquanto “Disorder” – uma das favoritas deste que vos escreve – ecoava pela sala, John Herguth subiu a palco precisamente às 21h para dar início à noite.

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Com o seu projeto Pharrows, o americano deliciou-nos com o seu set de música eletrónica bem convidativa a um ou outro passo de dança, adequando-se bem à sala do Paradise Garage, uma discoteca por excelência. Enquanto os presentes que já tinham atingido a meta dos 20 anos mostrava o seu arsenal de dança, os que ainda não tinham lá chegado tiravam as selfies da praxe e discutiam sobre o nome principal da noite.

Com tudo a postos para o momento alto que todos ansiavam, já era difícil encontrar um espaço livre pela sala a dentro e quando o relógio atingiu o ponteiro das dez, o público ficou em êxtase, prolongado o sentimento quando as luzes se apagaram e um excerto de “Requiem in D Minor” de Mozart antecedera a entrada da dupla. Com pouca ou nenhuma visibilidade para o palco, um pouco da barba de Ethan Kath e o cabelo de Christopher Chartrand – baterista de longa data em tournée – saltam à vista, entrando de forma quieta e sorrateira, contrabalançando a chegada explosiva de Edith Frances. Abrindo com “Concrete”, a artista toma o palco de assalto e faz do próprio o seu terreno, expandindo as fronteiras com cada salto e correria que fez por ali. Cumprindo uma das tradições de Crystal Castles seguiu-se “Baptism” e foi aposta mais do que certa, provocando a euforia nas camadas jovens que se agrupavam nas grades, que saltavam desalmadamente e tinham os versos da música na ponta da língua. No meio de tantas luzes strobe, impróprias para epiléticos, Edith dançava, rebolava e gritava, postura esta que se manteve em “Suffocation”, outro êxito de II.

Ao ver o comportamento da cantora, é aí que entra em ação a injusta mas inevitável comparação com Alice Glass: será a nova vocalista uma cópia da antiga ou alguém que quer tentar deixar a sua marca pessoal e dar uma nova vitalidade à banda? Sinceramente, podemos dizer que reúne um pouco de ambas as opções. Em termos de presença em palco, Edith mantém a mesma genica de Alice, se não mesmo mais endiabrada e provocadora, mantendo o mesmo nível de atuações fugazes e caóticas que tanto definem as aparições ao vivo de Crystal Castles. Contudo, e aqui reside a maior diferenciação entre ambas, a nova vocalista possui um alcance vocal muito acima do que Alice, sendo notório em temas como “Frail” ou “Celestica”. Além disso, foi graças a si que “Crimewave” soou tão limpo, naquele que foi talvez o grande momento da noite.

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Relativamente ao primeiro disco dos Crystal Castles, I, só mesmo o maior êxito da banda foi tocado na íntegra, embora uma versão remisturada de “Untrust Us” tenha dado o ar de sua graça num momento em que tanto Edith Frances e Ethan Kath se cruzaram atrás de uma mesa de mistura – sim, ela é multifacetada – num dos poucos momentos em que a vocalista parou quieta. Logo de seguida, a dupla atirou-se de cabeça para “Fleece”, em que a nova senhora de cristal se atirou para as grades de forma a ter um contacto com aqueles que tanto ansiavam por estar perto de alguém que, no final da noite, se tornaria num novo ídolo, tentando estabelecer contacto físico com uma mão enquanto a outra tentava captar o momento via telemóvel.

Mesmo no meio de intensos strobes, o sorriso tímido mas genuíno de Ethan Kath sobressaía de forma notória, evidenciando que acima de deslumbrado pela calorosa receção dos lisboetas, desvaneciam-se as teorias de que o nome dos Crystal Castles estava sepultado. Tanto banda como público não queriam dar a noite por encerrada, havendo um esperado encore com “Femen” a incendiar novamente uma plateia que se recusou a mostrar sinais de fatiga durante uma robusta hora de concerto mas, para repousar um pouco, Edith Frances agarrou em todas as garrafas de água que residiam no palco para se tornar num repuxo humano e hidratar as primeiras filas com cerca de dez litros de água, arruinando a estética capilar de um público que se estava nas tintas para a aparência naquele momento. Terminando em chave de ouro e como já se adivinhava, “Not In Love”, música emprestada dos Platinum Blonde e que conta com uma versão em que Robert Smith (The Cure) dá voz, arrancou todas as energias que tinham sobrado no Paradise Garage, onde se salienta o trabalho exemplar Christopher Chartrand, cujo manuseio na bateria torna esta canção em algo mais vibrante quando interpretada ao vivo.

Não houve despedidas nem palavras de agradecimento por parte da banda, mas sim uma mensagem subliminar na qual Edith Frances subiu para cima dos teclados do comparsa, de strobe na mão. A iluminação vinda daquelas lamparinas maquiavélicas só veio garantir que ainda há vida para lá dos Crystal Castles de 2008/2014 e, julgando pela noite de quinta-feira passada, ainda há mil e um motivos para nos perdermos de amor pela electrónica passivo-agressivo da dupla oriunda do Canadá. Numa cidade marcada pelas obras e reparos que mais parecem nunca terem fim, Edith Frances e Ethan Kath vieram deixar bem claro a restauração do seu palácio de cristal vai de vento em poupa, com o seu término estar previsto para muito em breve. Se os Crystal Castles ainda são a banda que eram? Não, mas quem disse que isso é necessariamente mau?

Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Daniel Jesus
Promotor – Everything Is New