Peguemos num canivete, dos de feira, daqueles de cabo de madeira e que tantas vezes vemos entre galos de Barcelos e a cerâmica de Bisalhães, do mesmo estilo que Peter Brötzmann sacou do colete na noite anterior para moldar palheta de saxofone. Saquemo-lo com cuidado e seguremo-lo firme na mão direita, com a mão esquerda abramos a pálpebra e sem hesitar façamos corte profundo sobre a pupila. Repetir o mesmo procedimento no outro olho. Em caso de dúvida consultar Buñuel em Un chien Andalou. A visão não é necessária. Os ouvidos e cérebro processam o que cada um quer ver.
Um fundo negro, um verdadeiro muro de amplificadores interrompido por aquele objeto de madeira único e que confere uma espécie de gravidade à música de Filipe Felizardo. Honras de abertura do concerto de Stephen O’Malley no passado dia 27 de Fevereiro no Musicbox. Aquela caixa de madeira natural, não envernizada para que o som se mantenha primário, para que o diálogo estabelecido seja executado segundo coordenadas dispersas e difusas. Aquela caixa de madeira natural ligada por um cabo a uma guitarra e desse cabo a nós. Aquele amplificador, aquele olho negro que nos põe em mira, que nos obriga a estar atentos a cada ligeiro movimento, porque a ele corresponde uma frequência diferente. Um permanente diálogo entre Felizardo, a guitarra, a caixa e o espaço em volta. Tudo é matéria. Não é novidade para ninguém a enormidade da pesquisa que o músico lisboeta tem vindo a desenvolver, desde o l//=207.8º, b//=-56.3º (edição de autor – 2011), passando pelo Guitar Soli for the Moa and the Frog (shhpuma – 2014) até ao mais recente Volume IV: The Invading Past and Other Dissolutions (Three:Four Records – 2015) e que tem vindo a apresentar regularmente, e felizmente, acrescentamos, desde sítios tão díspares como a Culturgest, o Estrela da Graça, e que concerto, ambos a solo, ou acompanhado em The Orm no recente Mini Brutal Fest.
Drone, stoner, noise e cinco minutos de intervalo entre a atuação do músico português e Stephen O’Malley. Ligar cada um dos amps, verificar que cada botão está no ponto exacto, o equivalente a dizer no máximo, pegar na guitarra e a um canto debitar os acordes puxados até ao limite do infinito. O braço como quem carrega martelo de Thor e novo acorde. Verificar pedais. É o mecânico do inferno. É o início do fim. Ardemos em combustão sonora, vivemos atormentados pelas ossadas que nos caem como gotas incandescentes, cada chaga é aberta com prazer incontido. Teria sido sacrifício acolhido com maior prazer se não fossem os malditos tampões, que por precaução excessiva decidimos colar nos tímpanos e se a fisicalidade sonora fosse mais presente. Por demasiada expectativa, pelos relatos do Amplifest uns meses antes, mas sobretudo de Sun O))) na Lx Factory (2010) fariam acreditar que seria a experiência mais próxima que alguma vez teríamos do purgatório, no entanto, acabou por ser carreira mais curta e ficámo-nos pelo limbo.
A noite de X Aniversário do Musicbox Lisboa não seria a mesma sem a presença dos Masters of Doom em PT, ou como quem diz, os Process of Guilt. Se os momentos anteriores já teriam sido intensos, o que se seguia não seria menos. Noite completa para ouvidos (e pescoços) mais resistentes.
PS.: Título roubado descaradamente do livro de Filipe Felizardo – O Subtraído à Vista (Chili Com Carne, 2015).
Texto – João Castro
Fotografia – Luis Sousa