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Angel Olsen, Não pises as folhas se não parto-te o rabo

A porta azul em ferro fecha-se. São quatro da manhã não há mais para onde ir, nem se quer. Pegar na Vespa está fora de questão, um autocarro nesta altura é constrangimento a mais. De soslaio, três a quatro Luckies em choque com o isqueiro no maço. Sabes que serão os teus companheiros de divagação. Uma hora a pé. Os sons ínfimos. Um pássaro, um burburinho de carro que se arrasta no empedrado. E as árvores, as árvores e a mudança de folhagem – as folhas largas que dão lugar às agulhas dos pinheiros, mais a ocidente na cidade. Antes de dormir uma olhadela pelo Facebook. A mesma amiga e quase sempre o mesmo post – White Fire, Forgiven/Forgotten, WindowsAngel Olsen. Companheira, minha e dela, sobretudo dela no desejo, nas preces, arrisco, de a ver tocar ao vivo.

Finalmente. Finalmente, porque por mais vezes que a vejamos em concerto, a miúda de camisa azul às bolinhas brancas, nascida em St. Louis, será sempre a companheira para a noite em que escutamos o luar debaixo de uma árvore. Será a mesma companheira disposta a dar um valente pontapé no rabo a quem a importunar. Nunca seremos um só. Não somos um só. E Angel, e não é condição celestial é mesmo terrena, é dois, três seres reais, imaginados, pelo menos verossímeis.

O concerto que todos ansiamos. O pátio cheio e inclinado do Palácio Sinel de Cordes. Ao início sentados e expectantes. Efeito do deslumbrante? Efeito paralisante de um sonho concretizado? Debaixo daquela franja e olhar desafiante, em concordância com o nariz, ordena os espectadores a levantar-se. A voz pode ser doce, a maneira delicada, mas esta é ordem para ser obedecida. Colaborou com Bonnie “Prince” Billy, Wilco e músicos de igual calibre e a cada elogio a Burn Your Fire for No Witness devia-se acrescentar mais uma linha, pois todos são poucos. Tudo isto. Mas o que impressiona é a mudança de registo. Em banda é rockeira, é forte e os quatro em palco são directos, o baterista lá atrás ela em frente.

Acreditamos veementemente ser capazes de Unfuck the world ou parte dele, que ultimamente, para alguns pelo menos, anda bem lixado. Lixadinho mesmo. É libelinha de couraça, mas com fobia às pessoas. Encanta-se com as Terças-feiras à noite e apresenta as novas músicas, neste momento só ela e a guitarra, como uma sexy fucking new song. Segue a setlist ou não, isso é o menos relevante. Já todos caíram no seu feitiço e quando anuncia ser a última música nada mais se espera que um ohhhh sentido. Continuamos ali, no exacto ponto entre o enternecido e a vontade de receber mais um, um pontapé no rabo. Seja para nos levantarmos ou para passarmos uma noite na choldra.

Angel Olsen repetiu a solo no dia seguinte na ZDB. Não poderia ser mais um e outro ainda? Mantendo a tradição dos songwriters americanos e amantes da folk, apelando à veia mais contestatária. Difícil exercício de adivinhação. Mas desde que ela esteja.

Texto – João Castro
Fotografia – Vera Marmelo | Galeria Zé dos Bois