2016 Backstage Festivais Reportagens Reverence

Entrevista a Adolfo Luxúria Canibal, O lado mais cru do rock’n’roll

Na passada sexta-feira, dia 27 de Maio, os Mão Morta preparavam-se para fazer o primeiro de 2 concertos no âmbito das Reverence Underground Sessions no Sabotage Rock Club. O Música em DX teve o prazer e o privilégio de assistir ao soundcheck da banda, já no fim do dia, e conversar com a voz e alma dos Mão Morta, Adolfo Luxúria Canibal. Como fãs e curiosos que somos, tínhamos algumas perguntas que, certamente vocês também têm. Deixamos-vos a conversa, na esperança que seja tão interessante e empolgante para vocês como foi para nós.

Música em DX (MDX) – Como é andar há 31 anos na estrada?

Adolfo – Para nós é sempre uma novidade. Estamos sempre a fazer coisas diferentes mesmo quando tocamos temas que fazem parte do nosso reportório e que tocamos muitas vezes, nunca os tocamos exactamente igual, estamos sempre a reinventa-los. Como também não tocamos todos os fins-de-semana, nem nada que se pareça, acaba sempre por ter um ar de festa, um ar de excepção, de maneira que não nos cansamos, efectivamente.

MDX – Há algum episódio ou momento que vos tenha marcado mais nestes anos todos?

Adolfo – Há muitos. Normalmente quando damos aqueles concertos chamados inesquecíveis, ficamos contentes. Ainda agora, recentemente, tivemos uma reacção que nunca tínhamos tido, apesar dos 31 anos, quando tocámos com o remix. Fizemos o concerto de estreia em Braga, no Teatro Circo e de repente olhámos para as pessoas, estavam de pé a aplaudir, o Teatro Circo cheio, e sentia-se na cara delas que havia ali uma alegria e satisfação, uma espécie de euforia de encanto (há varias euforias, mas esta era de encanto), que nunca tínhamos provocado numa assistência e foi muito estranho e muito reconfortante sentir aquela sensação nova. É bom ao fim de 31 anos conseguirmos provocar e ter feedback´s virgens.

MDX – E aquele concerto no RRV onde te cortaste?

Adolfo – Foi um concerto único. Não há uma explicação racional, o concerto ditou as circunstâncias. Quem esteve lá não achou nada de extraordinário, pode ver-se nas crónicas que se fizeram na altura ao concerto, parece um facto banalíssimo, não há nenhuma interpretação. Foi um facto normal porque efectivamente a circunstância daquele concerto proporcionou isso, foi aquilo mas podia ter sido outra coisa qualquer. O concerto estava a ser de tal maneira intenso e violento e a sala estava de tal maneira sobrecarregada que aquilo foi um episódio do concerto como houve outros. Na altura as críticas falaram mais do roubo do pedal do guitarrista que aconteceu no final, foi a coisa mais importante porque pôs fim ao concerto, digamos, do que propriamente o “cortezito”, que não foi um cortezito mas que não teve relevância (fiz 7 cortes, levei 30 e tal pontos, tenho umas pequenas recordaçõezinhas hoje). Essa relevância só veio com o afastar do tempo, com as pessoas que não estiveram lá, começam a encontrar pontos de referência e a coisa começa a diabolizar-se e a ficar mito.

20160527 - Concerto - Mão Morta - Reverence Underground Sessions @ Sabotage Club

MDX – O que achas que mudou na música em Portugal nestes anos?

Adolfo – Mudou muita coisa. Mudou tanta coisa que até é difícil fazer comparações. A começar pela própria indústria. No início dos anos 80 a indústria musical em Portugal era balbuciante, estava a começar e nos anos 10 a indústria musical está num instrutor. Houve uma grande mudança a esse nível, entre olhar para o futuro e ver um sol a brilhar e olhar para o futuro e ver nuvens negras. A mudança é toda é essa, de esperança e de meios. Depois, quem fazia um disco na época, em que só havia vinil, tinha uma espécie de recepção e de visibilidade que hoje em dia não existe, fazer um disco hoje é uma coisa perfeitamente banal e corriqueira e não tem relevância nenhuma. Na altura um disco vendia-se, hoje em dia um disco dá-se nos concertos. Na altura as pessoas sabiam tocar pouco mas tinham grande vontade de tocar diferente e tocar com o que sabiam, inventar e fazer coisas estranhas, hoje em dia toda a gente sabe tocar muito bem mas toda a gente imita mais o que se faz lá fora do que propriamente procura sons. Toda a gente anda a procura do hit radiofónico, da eficácia para chegar ao grande público. Na altura o rock era rock na sua essência, no seu lado mais tribal, mais orgânico, mais visceral. Era uma coisa que se procurava, que se vivia, que se abraçava e hoje em dia está toda a gente a fazer música ligeira, mesmo que se chame de rock não deixa de ser música ligeira, são raras as excepções. É tudo muito eficaz, tudo muito bem tocado. É tudo formatado para o grande público, para os tops (que se chega lá com 300 discos hoje em dia). Portanto, a diferença é enorme! Não há comparação. Há coisas muito interessantes a fazer-se, há uma espécie de euforia sobre o que se está a fazer em Portugal e eu não vejo motivo nenhum para essa euforia. Há coisas boas que se estão a fazer mas não é sobre essas coisas que recai a euforia, as coisas sobre as quais recai a euforia é música ligeira. Pode ser música ligeira muito interessante, que é! Mas não tem nada a ver com aquilo que eu gosto e com aquilo que eu consumo, que é rock.

MDX – Dos álbuns todos que vocês têm, há algum que vos tenha marcado mais ou que tenha sido mais difícil de produzir/editar?

Adolfo – Há álbuns para todos os gostos. Há álbuns que foram importantes em termos do que foi o nosso futuro como o Mutantes S. 21, desde logo. Porque saiu numa altura em que nós estávamos de alguma forma desalentados e que nos veio relançar com muita força e nos veio dar uma outra pujança e visibilidade, é o primeiro disco que sai em CD. Depois há o Muller No Hotel Hessischer Hof que corresponde a um espectáculo. Foi a primeira vez que nos aventuramos a sério em espectáculos mais teatrais e esse disco e o vídeo é a gravação desse espectáculo, é uma coisa marcante que depois iriamos repetir com Maldoror e com outras experiências. Na altura sentimo-nos quase como que a pôr tudo em jogo porque nunca tínhamos feito aquilo, só dependíamos de nós, não contratámos ninguém externo como já contratamos para o Maldoror. Ali era tudo feito por nós, a encenação era feita por nós, o risco era total, não sabíamos onde nos estávamos a meter e felizmente os deuses deviam estar connosco porque a coisa correr muito bem, mas atrevo-me a dizer que foi um mero acaso. Depois temos o Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável, que é um disco que demorou muito tempo a fazer, foi um parto muito difícil. Meteram-se outros discos pelo meio, porque foi a primeira vez que trabalhámos sobre teorias políticas, sobre questões filosóficas profundas e deparámo-nos com a dificuldade de transpor isso para música sem que a música se tornasse uma coisa chata e impossível de ouvir e, por outro lado, sem que a teoria que estávamos a trabalhar se tornasse uma banalização desinteressante e superficial das teorias que queríamos trabalhar. Foi o disco mais conceptual em que tudo tem um sentido, todas as intervenções têm um sentido e foi um disco difícil de lá chegar. Marcou-nos muito por isso, foi o nosso expoente máximo em termos de conceptualização do álbum. Depois há discos que gostamos muito, o Primavera de Destroços, o Nus também é engraçado para nós porque é o nosso primeiro grande disco a sério que nós editamos pela nossa editora, um disco que foi recusado por tudo o que era editoras nacionais (até as independentes). Todos nos diziam que era um suicídio comercial uma vez que começávamos logo com um tema de 20 e tal minutos a abrir e diziam que ninguém queria ouvir aquilo. No final, acabou por ser o disco que mais vendeu, teve belíssimas críticas, teve as melhores vendas de todos os nossos discos contra todas as espectativas da indústria, o que para nós foi extraordinário. Foi um risco enorme, tivemos de fazer um empréstimo bancário para o editar e no fim a coisa correu lindamente e compensou tanto financeiramente como artisticamente, porque arriscámos e ganhámos. O último disco também é importante, quanto mais não seja pela polémica que causou que tinha com o vídeo e não com o disco em si, mas que acabou por deslizar e por sobrar para o disco. O disco ressentiu-se. Não propriamente em termos de vendas mas em termos de airplay, em termos de concertos, porque houve muitos concertos que foram postos de lado, que foram anulados… coisas relacionadas com as Câmaras. Hoje em dia está tudo relacionado com as Câmaras: os teatros, os auditórios, é tudo municipal, portanto houve algumas Câmaras que, pura e simplesmente, riscaram contratos.

MDX – Mas achas que a mensagem deste último disco chegou onde devia chegar?

Adolfo – Nós não tínhamos propriamente uma mensagem, fizemos um pensamento sobre um estado do país que, felizmente, já não é o mesmo. Não acredito que música sirva para mudar mentalidades, portanto não serve para transmitir mensagens, serve para nos pôr a pensar quanto muito e é o que a gente quer no fundo: que nós próprios pensemos e que as pessoas que nos ouçam pensem connosco, pensem por si. Mas o que é certo é que aquele mundo que nós retratamos e as hipóteses que levantámos, felizmente, no funcionamento democrático do país, foi posto de lado e neste momento temos uma geringonça a funcionar lindamente e a pôr as pessoas com a sua integridade minimamente no sítio.

MDX – O facto de terem atribuído uma carga politica tão grande ao álbum foi porque estavam revoltados com o estado do país na altura?

Adolfo – Estávamos revoltados e, pelos vistos, não éramos só nós. É evidente que estávamos num país com um estado lastimável. O disco saiu no início de 2014, portanto estávamos em plena época da Troika, do Passos Coelho e Paulo Portas, estava toda a gente a ir para o desemprego, toda a gente a ver os salários reduzidos, a perder regalias sociais, as pessoas eram convidadas a emigrar, o serviço de saúde a deixar de funcionar por falta de gente e de meios, tudo a ficar caro, o acesso à saúde e a tudo, as escolas privadas a receber imenso dinheiro para substituir as escolas públicas que estavam a ser desmanteladas, tudo o que era serviço público a ser desmantelado e o privado a ser incentivado. Era um horror! Não conseguíamos fugir a essa realidade e o disco acabou por reflectir um bocado o nosso incómodo com o país em que vivíamos e ao qual pertencemos.

MDX – Em 2014 participaste num espectáculo musicado organizado pela companhia Comédias do Minho. Como é que explicas essa versatilidade de música/teatro/advocacia?

Adolfo – Tirando a advocacia que é a minha profissão, para mim está tudo interligado. Não é propriamente teatro, são espectáculos musicais. Tem o lado teatral, tem encenador mas nós trabalhamos essencialmente com a parte musical e de qualquer maneira no nosso lado mais musical temos sempre um lado teatral: os nossos concertos têm sempre essa transversalidade, de maneira que é só explorar mais esse lado. Já tínhamos feito um espectáculo de encerramento da Capital Europeia da Cultura em Guimarães, em 2012, na altura uma coisa muito mais vasta: teve 600 pessoas em palco, com uma grande orquestra, maestro, com dois coros e com população local e isso sim deu um grande trabalho, participámos activamente desde o início. Neste aqui eram só 70 pessoas, portanto foi uma coisa mais ligeira mas deu-nos um prazer enorme porque é muito importante para nós trabalhar com as pessoas que se interessam por cultura e por experimentar, porque as pessoas aprendem e gostam de experimentar e senti que, de repente, se abre um mundo novo para as pessoas e é uma sensação de prazer enorme, é inesquecível de boa. Foi isso que fizemos no Então Ficamos em Guimarães e foi por isso que fizemos no Chão, com as 70 mulheres, em Paredes de Coura.

MDX – Qual foi o concerto que gostaste mais de ver e aquele que gostaste mais de dar?

Adolfo – Há 2 concertos que eu gostei muito. Um foi na primeira vez que vi o Iggy Pop ao vivo, no Coliseu dos Recreios, nos finais dos anos 80, onde ele tocou os temas todos dos Stooges para além dos seus temas mais apelativos da carreira a solo. Foi um concerto extraordinário! O Coliseu estava semi-cheio, ou semi-vazio, conforme a perspectiva, o que era óptimo porque nos podíamos aproximar do palco. Nunca tinha visto o Iggy Pop, para mim era uma espécie de ídolo e foi interessantíssimo! Ele ainda estava bastante novo, foi muito interessante ver aquele corpo todo retalhado (parece uma espécie de teia) com pequenos cortes, era muito visível à distância a que eu estava e aquela maneira de como ele nunca está quieto e está sempre a saltar e uma pessoa nem percebe que ele tem uma perna mais pequena que a outra (acho que é por isso mesmo que ele não para quieto). Depois, um concerto totalmente diferente foi os Swans, a primeira vez que os vi já nesta última encarnação, na primeira vez que vieram tocar a Portugal, na Casa da Música, no Porto. Foi um concerto extraordinário de intensidade sonora, a maneira como eles trabalham o som é uma maneira diferente de tocar rock’n’roll, é o trabalho do som e a intensidade, há uma entrega ao som que é incrível e esse concerto ficou-me marcado para sempre. O que eu gostei mais de tocar… é tão difícil! Há tantos concertos que eu gostei de tocar por motivos diferentes. O concerto que nós demos no Primavera Sound há 2 ou 3 anos foi um concerto fabuloso, correu-nos muito bem, entrámos bem e foi sempre a abrir. De repente estávamos a tocar, desgraçadamente, ao mesmo tempo que os Swans e pensávamos, como seria lógico, que não iriamos ter ninguém e, quando começámos a tocar, a plateia estava bastante composta e quando acabámos aquilo estava completamente cheio. Foi um delírio, toda a gente adorou. Foi uma espécie de furacão que passou naquele palco e saímos de lá felicíssimos! Tínhamos alguns músicos a olhar para o nosso concerto e foi algo deslumbrante, sentimos que estava a ser deslumbrante para as outras pessoas também. Aquele de Braga também com a remix, não por causa do concerto em si mas pela reacção que provocou. Depois para trás há muitos concertos que, por vários motivos diferentes, me ficaram na memória.

MDX – Ainda te lembras do primeiro concerto?

Adolfo – Claro que me lembro, éramos só três: eu, o Miguel Pedro e o Joaquim Pinto. O Miguel Pedro na altura não tocava bateria, não tínhamos bateria, tínhamos caixa de ritmo. Tocava guitarra, algo que ele arranha, não é propriamente guitarrista, e estava um bocado como peixe fora de água, encostou-se a um canto de costas para o público. O Joaquim Pinto tinha acabado de aprender a tocar baixo, portanto tinha a mesma sensação que o Miguel, estava encostado noutro canto também de costas. E eu tinha um espaço vazio enorme que tinha de ocupar e tinha de tornar o concerto interessante. Para nós foi uma prova de fogo terrível, não gostámos nada do concerto, as poucas pessoas que viram gostaram muito mas para nós não foi um bom concerto e decidimos que tínhamos de mudar uma data de coisas: tínhamos que encher mais o palco, o Miguel passou para a bateria, metemos um guitarrista, pusemos o Pinto a tocar teclados também, e o segundo concerto já foi algo que nos deixou mais satisfeitos e a pensar que o caminho era aquele.

MDX – Tens algum álbum da tua vida?

Adolfo – Tenho vários. Desde o primeiro e único dos Pistols – Nerver Mind The Bollocks, passando pelos Stooges, o Fun House, passando pelo primeiro do Iggy Pop, o Idiot, passando pelo primeiro da Patti Smith, o Horses. Há muitos discos da minha vida, não quer dizer que sejam os melhores mas são aqueles que, de alguma forma, tiveram efeitos duradouros nela.

MDX – O que significa para vocês participarem nestas Underground Sessions?

Adolfo – Para nós é voltar um bocado ao mais primário do rock’n’roll: a pequena cave, o pequeno palco, o pequeno clube. Estivemos há 2 ou 3 meses atrás num pequeno espaço com um palco ainda mais pequeno que este no C’est la vie, na festa de aniversário, onde fizemos um concerto surpresa. É sempre divertido. Temos de nos adaptar, corta grande parte dos nossos temas porque são incompatíveis com o espaço, há uma data de coisas que não conseguimos trazer para o palco e ficamos reduzidos ao mais básico e só podemos tocar os temas que conseguimos tocar com esse mais básico, mas são os temas normalmente mais a abrir, que se coadunam perfeitamente com o espírito do clube e, para nós é óptimo. Depois o facto de estar ligado ao Festival Reverence que para nós tem belíssimas memórias do concerto que lá demos em 2014 e o próprio festival em si. É juntar o útil ao agradável, é maravilhoso.

20160527 - Concerto - Mão Morta - Reverence Underground Sessions @ Sabotage Club

MDX – Vão dar 2 concertos iguais?

Adolfo – O alinhamento vai ser o mesmo mas se os concertos vão ser iguais ou não, só depois é que podemos ver.

MDX – E o que podemos esperar para hoje?

Adolfo – Temas muito ligados aos nossos primeiros discos porque são aqueles que eram feitos com meios mais rudimentares, mas também temas do último disco e vai ser, sobretudo, rock’n’roll a abrir. Vai ser uma cavalgada.

MDX – O que é que te dá mais prazer na vida?

Adolfo – A preguiça talvez, não fazer nada.

Realmente foi, é, e vai continuar a ser, puro rock’n’roll! Obrigada Adolfo e obrigada aos Mão Morta. Obrigada, também, ao Sabotage Club e ao Reverence Valada por nos proporcionarem estes momentos.

 

Entrevista – Eliana Berto
Fotografia – Luis Sousa