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A maturidade melódica de Homem em Catarse, deixa-nos “sem palavras, cem palavras”

Afonso Dorido é um compositor inteiro. Sobrepõe os ritmos com respeito e mexe nas notas com pinças para que encaixem na perfeição. Há sempre um som que alimenta a tela e que segura a estrutura da música, do início até ao fim. Introduz os elementos melódicos nas cordas e assume a altivez das notas com consciência. Replica com carinho os acordes doces e quentes, que neste álbum se mostram com muita firmeza. Mas quando o doce fica demasiado meloso tem a sobriedade de chamar à composição uma certa acidez, o que lhe confere um equilíbrio inteligente.

Este é o quarto álbum de originais de Homem em Catarse, tendo este iniciado a purgação em 2015 com Guarda Rios, um EP auto-editado, e se ter estreado num longa duração em 2017 com Viagem Interior, um percurso às principais cidades de Portugal profundo. “sem palavras, cem palavras” é a continuação da purga, é o caminhar para o interior de nós, é um corpo melodicamente purificado e intenso em que por vezes nos obriga a uma respiração mais profunda.

Tu eras apenas uma pequena folha”, dá-nos as boas vindas à compilação de dez temas que não são mais do que dez estórias que se unem por um poema de cem palavras. Estórias poeticamente compostas num ecletismo que nos envolve logo numa primeira escuta. Um começo de uma delicadeza breve mas sofisticada, num piano que não se aventura a grandes voos porque deles não precisa para se afirmar. “Hey Vini!”, seguro pelas repetidas batidas dos anos 1980 e alinhado com os passos, “um dois três, um dois três”. Mas logo o dedilhar de cordas, tão característico na guitarra do Afonso, ofusca a peça e traz-nos aqueles sopros que espraiam pelas nuvens mais cinzentas, e acompanham o voo da coruja que desliza sem ruído. “Hotel Saturnyo“, é de um minimalismo electrónico que nos projecta para luzes intensas e coloridas de neons numa baixa de uma grande cidade, que poderia ser a de Tóquio ou de Shangai. Ritmos melódicos apressados que rapidamente se desfazem na imensidão da urbe e ficam suspensos numa camada espessa da atmosfera.

Sem aviso prévio o álbum segue para outra dimensão nos três temas seguintes. Quase que me atreveria a dizer que este é o momento de “sem palavras, Fico.” Três baladas unidas pelo choro da guitarra e pela ternura do violino. “Lembro-me de ti mesmo quando não me lembro” é o conto mais romântico de todos os cantos, é um choro imensamente feliz que transborda a alma de emoção. Uma dança a dois, compassada na silhueta da guitarra que faz o juramento de um amor cúmplice. E é nessa jura que “Maria Bonheur” aparece em paisagens com cores terra, imersas na diversidade de ritmos que se vão cruzando até quase ao final da música. Mas a guitarra fica momentaneamente sozinha e espera pelo violino, que a acompanha muito ao de leve e sem pressas até ao último acorde. “Calle del Amor” fecha o trio romântico e com ela regressa o piano. Mais complexo e mais encorpado, a dada altura chega mesmo a subir uma nota de exaltação, mas rapidamente volta a enternecer-se e a respirar apaixonadamente.

(clicar na imagem para ouvir “Yo La Tengo”)

Quando o sintetizador se torna orgânico é sinal que nada foi feito ao acaso. As cordas magnéticas que sustentam os ritmos humanizados, acabam por se evidenciar em boa parte de “Yo La Tengo“, o single de lançamento do álbum. Vozes ao fundo que entram no meio dos sons sintetizados e que sozinhas fecham o tema.”Danças Marcianas“, estão recheadas de sons electrónicos premeditados e pensados no encaixe melódico da guitarra. É como conduzirmos numa estrada estreita, coberta por uma linha uniforme que se vai esbatendo no horizonte, no meio de uma madrugada acelerada. Quase a terminar, “Mar Adentro“, muito provavelmente o tema mais fiel à guitarra do Homem em Catarse. Experimental sem ser minimalista, porque cresce na repetição e na complexidade dos acordes e no dedilhar das cordas. “Mar Adentro” enche-nos de sonoridades fortes capazes de serem mastigadas.

Como se fosse um sopro de luz e para terminar, um piano entra tímido e vai conquistando espaço na “Casa dos pequenos pássaros“. Mas rapidamente todos os instrumentos se recolhem e deixam-nos com o nosso silêncio. ” Sou crente num poema como sempre”.