Há alguns anos atrás o mês de Setembro marcava o final da temporada de festivais de música e o regresso em força aos concertos nas salas locais, com as bandas a visitar os fãs em nome próprio. A verdade é que esse distanciamento se dilui bastante nos últimos anos com a proliferação do número de festivais, que agora já não se circunscrevem meramente á época estival. Foi um pouco com esse espirito que regressámos ao RCA Club no passado sábado à noite, num espirito de regresso a casa, de regresso aos momentos que quebram momentaneamente a rotina. O que nos esperava era algo mais que uma quebra na rotina.
Para lá da porta do RCA aguardavam por nós os californianos Numb.er e os nova-iorquinos A Place to Bury Strangers, cuja fama de ruidosos para além do razoável, bem como de destruidores de guitarras lhes têm valido a atenção mais cuidada, nunca se sabendo bem o que esperar das suas actuações, apenas que se pode esperar quase tudo. Regressam a Portugal quase exactamente dois anos após uma explosiva actuação no Reverence Valada para dois concertos; Hard Club no Porto a 31 de Agosto e RCA em Lisboa a 1 de Setembro.
2018 foi o ano do regresso aos discos, (Pinned saiu a 18 de Abril) e da adição nada casual de Lia Braswell (Ghotic Tropic e Les Butcherettes) à banda. A banda renovou o seu equilíbrio e tem um álbum novo, mas os ecos das actuações das últimas semanas dizem que nada mudou; Os concertos continuam explosivos e surpreendentes.
Os Numb.er imbuídos de uma pontualidade britânica inauguraram a noite, e aqui nem se pode falar em aquecer porque na verdade toda a sala fervia de gente e de calor. Comandados pelo fotógrafo e criativo Jeff Fribourg, ex-membro dos Froth, os Numb.Er passaram em revista quase integralmente o álbum Goodbye, de onde se destacaram os ritmos mais acelerados de Numerical Depression e a atmosfera bastante densa de State Lines. Não surpreendendo muito, os Numb.Er deixaram uma boa sensação, confusa mas adequada ao que nos esperava. A banda passou ainda por Hate, Memory Stained e We Hide para terminarem o breve concerto com Again, numa prestação que evidencia ainda alguma maturidade em falta, mas nada que o tempo não venha a corrigir naturalmente.
Mal as luzes se apagaram após a nota final dos Numb.Er, os ânimos aqueceram um pouco mais, sentia-se a pressão do público junto ao palco, e a sala encontrava-se já totalmente repleta.
Oliver Ackerman, Lia Braswell e Dion Lunadon cruzavam o palco e organizavam tudo. Faltava pouco, boa parte de nós seguia os seus movimentos na ânsia de por distração perder algo.
Com uma sala a escaldar e cheia de fumo, num momento tudo escureceu um pouco mais, vislumbrou-se o sorriso de Lia, lá atrás da bateria, as silhuetas de Oliver e Dion, e numa fracção de segundo, mergulhámos num caos de luz e som, calor e suor, completamente impróprio para gente demasiado sensível.
O caos de luz e som em que o trio nos mergulhou quando já estávamos imersos no nosso próprio calor, foi avassalador, pelo menos nas primeiras filas a sensação que tínhamos enquanto os APTBS tomavam conta do palco era a de que estaríamos debaixo de fogo hostil. Nos primeiros cinco minutos de concerto, Oliver partiu uma guitarra, com a qual continuou a tocar, como que para libertar a pressão da expectativa que é já tida sobre o que os APTBS habitualmente fazem em palco; O acto libertador de partir guitarras e provocar o caos não para nos surpreender, mas para nos manter cativos de tudo o resto. Com o fim desse suspense os APTBS libertaram-se totalmente para nos aturdir. Depois do assalto inicial, o espanto da paz necessária ao segundo assalto capaz de tirar a respiração aos mais incautos, porque a maioria já esperava esta interação, só não sabia bem como nem quando.
O mote é dado por Lia. Só no palco, sentada atrás da bateria munida apenas com uma harpa e a sua voz, solta os versos de Roam The Coast, lançando-nos num inesperado momento introspectivo, talvez apenas com o objectivo de nos distrair, mas sem efeito real. Cessada a voz de Lia e ainda não silenciada a harpa ouvíamos já o estertor industrial, a máquina de noise destrutiva e irresistível, muralhada pelo público que queria sugar ao máximo a proximidade do trio, agora ali ao alcance da mão. De repente toda a sala se concentrou naquele pequeno espaço, que se estreitou a cada som que o trio arrancava numa jam repleta de sons maquinais e absurdos, ritmos e luzes, num ritual quase obsessivo.
No regresso ao palco já todo o tempo se havia embrulhado naquele calor insano, mas na realidade, até esse parecia fabricado dentro do todo que os APTBS ali haviam já construído. No meio das luzes completamente absurdas, e por vezes até manuseadas por Oliver, Frustated Operator e Situation Changes, de Pinned a confirmarem o excelente trabalho da banda, que ao invés de muitas que vivem e revivem daquilo que fizeram quando se revelaram, pelo contrário continuam a viver do que vão construindo.
O concerto terminou como começou, inesperadamente, sem direito a regresso. Curto, conciso, completamente directos e deixando muito pouco espaço para respirar, os APTBS cumpriram as expectativas sem nos terem arrancado os últimos pedaços de sensatez, mas levando-nos à utopia da destruição e do caos como forma perfeita.
Texto – Isabel Maria
Fotografia – Luis Sousa
Promotor – At The Roller Coaster