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Entrevista com Filho da Mãe, “Essencialmente, Filho da Mãe tem a ver comigo sozinho no palco”

Se falarmos de Rui Carvalho, poucos serão aqueles que associarão este nome à música, mas se lhe chamarmos Filho da Mãe, ele não se importa e muitos se lembrarão do belo som da sua guitarra clássica que os transporta para onde, livremente, quiserem ir. Água-Má, o seu quarto registo de originais, foi gravado entre Lisboa e a Madeira e estará à venda a 4 de maio. Estivemos à conversa com Filho da Mãe, para falar, entre outras coisas, do novo disco e dos concertos que aí vêm.

Música em DX (MDX) – Como acha que o novo disco – Água-Má – se destaca e se diferencia dos seus três anteriores?

Filho da Mãe – É um bocado difícil de responder, assim de um modo específico. Há sempre elementos diferentes. Na verdade, eu sou daqueles que até agora não se preocupou muito em que eles tivessem sempre alguma coisa a ver. Há um fio condutor entre os três. São diferentes, porque passam anos entre os discos. Antes, procurava uma coisa mais rock e mais direta, que atacasse e fosse buscar mais as pessoas. Eu agora procuro alguma coisa que está mais no seu sítio, que se as pessoas quiserem ouvem, é mais introspetiva e mais calma. Antes os pedais e os efeitos que eu usava tinham mais preponderância, neste momento são mais um ordenamento. Há diferenças técnicas… a música se tornou mais improvisada e mais ao sabor da corrente.

MDX – Como gosta de explorar o seu instrumento de eleição? Recorre a diferentes modelos de guitarra ou a pedais de efeitos?

Filho da Mãe – Eu uso sempre uma guitarra clássica, é o mesmo modelo praticamente desde o início. Os efeitos que eu uso são basicamente aqueles que eu usava, eu preocupo-me mais com a música que estou a fazer do que com o veículo, com a ferramenta neste caso.

MDX – Mas não há uma preocupação em tentar sacar um determinado som da guitarra?

Filho da Mãe – Os instrumentos acústicos e cordas de nylon têm essa coisa boa, depende muito mais dos dedos… tu pegas em três guitarristas diferentes, com estilos diferentes, e pões a mesma guitarra na mão e aquilo soa diferente. Isso é uma coisa boa. Na guitarra elétrica também existe, mas na acústica nota-se mais. O volume, a suavidade… é muito diferente de pessoa para pessoa.

MDX – Porque é que o novo álbum tem associada uma certa carga negativa, nomeadamente no título do próprio disco e de algumas canções, como “Não me voltes atrás” ou “Não, não danço”?

Filho da Mãe – Nos outros discos também tenho coisas como “Não sei desenhar barcos”, “Não te mexas”. Eu ainda não percebi… nós falamos daqui a dois discos. Água-Má não tem nada de negativo, é um outro nome para alforreca e temos uma alforreca estranha na capa. Água-má para mim é extremamente positivo, só me lembro de coisas boas em relação a isso e não propriamente más, pelo contrário eu sinto que dá um pouco de cor e de dinamismo. Tendo estado na Madeira a gravar o disco, água-má pode ser a poncha que lá se bebe, aquela cachaça, pode ter a ver com a tempestade que lá estava. Pode haver várias explicações. Basicamente é um segundo nome para alforreca, vem no dicionário.

MDX – Por as suas canções serem instrumentais, sem palavras para além das que estão no título, não tem receio de que a interpretação das mesmas por quem as ouve seja diferente daquela que teve quando as compôs?

Filho da Mãe – Não tenho receio, estou à espera que isso aconteça, que é a parte forte. Alguém poder pensar que o meu disco é ótimo para ouvir em viagem, por ser muito repousante e relaxante. Há outras pessoas que me dizem que é inquietante e que ficam sempre ansiosas quando o ouvem e acho que essa parte é boa e que faz parte. Um concerto é uma coisa e o disco é outra. No disco, quando o compras, tens direito de o ouvir como quiseres e de como sentes que aquilo te toca, isso é até uma coisa que se procura.

MDX – Sendo instrumentais, como é que chega aos títulos das canções?

Filho da Mãe – Era muito mais fácil no início do que é agora. Às vezes é completamente óbvio e outras vezes não. O título para mim é uma coisa importante. É uma coisa que eu às vezes só descubro muito tempo depois. Eu gostava de dar os nomes às músicas depois de as tocar ao vivo uma data de vezes, o que não costuma acontecer. Por vezes é uma coisa de instinto, outras vezes é muito pensada. Os nomes destas músicas mudaram umas três vezes ou quatro. Outras, arranjei imediatamente na altura. Nos outros discos já tinha noção de como se iria chamar a música quando a estava a tocar. Neste caso, alguns nomes têm uma achega à Madeira e ao sítio em que estava a gravar, em Amares isso também aconteceu. No disco anterior tenho uma coisa chamada “Nó” porque um dia me fez um nó na garganta e ficou por causa disso. Eu tenho neste disco uma canção que se chama “Perseguição de Bananas” e estou lixado se tiver de explicar porquê, é muito gráfico.

MDX – Água-Má foi realizado em grande parte na Madeira, o que mais o fascina naquela ilha?

Filho da Mãe – Ele foi realizado tanto em Lisboa como na Madeira. Eu gosto da história de gravar no campo, desta vez tentei contrariar isso gravando num estúdio, mas fiquei indeciso… não sei, não foi muito pensado. Eu conheço a Madeira há algum tempo e eu conheço as pessoas que abriram os braços para eu lá ir, eu já toquei no Festival Aleste, na primeira e na terceira edições, já toquei na Estalagem da Ponta do Sol, e sempre que lá vou, aquela ilha tira-me do sério, é um sítio que eu adoro. Quando tive a hipótese de ir para lá, nem sequer pensei duas vezes, achei que tinha tudo a ver. Há uma temática da água nas coisas que eu tenho feito, mais na minha cabeça talvez, a única música que eu tinha feito antes deste processo todo foi feita no Algarve, ao pé da praia, eu tenho um estúdio do qual vejo o Tejo, havia sempre água e a Madeira encaixou perfeitamente.

(clicar na imagem para ouvir “Nem chuva, nem cães”)

MDX – De que modo é que as paisagens e os locais onde compõe o influenciam?

Filho da Mãe – Exatamente como, não sei, mas influencia sempre. Pode ser o som, a experiência, o tempo… as coisas influenciam sempre. Eu acho que o mais fácil de responder é a história da residência, tu vais para um sítio, sais do teu sítio, e vais para outro em que acordas pegas na guitarra e tocas, durante o dia as horas todas que quiseres e vou dormir, penso nisso e acordo no outro dia e faço a mesma coisa… é um bocadinho diferente do estás a ir para o trabalho e vires do trabalho, estás sempre no trabalho e isso acaba por influenciar.

MDX – Há algum local onde um dia gostaria de trabalhar num disco seu?

Filho da Mãe – Tenho, mas não vou dizer… para não enguiçar. No estrangeiro lembro-me logo de dois. Tenho uma ideia de gravar algures em África, porque foi sempre um sítio que eu quis visitar do ponto de vista da arqueologia, porque eu era arqueólogo e trabalhava em paleolítico, em coisas bastante antigas e em África é onde estão as coisas mais antigas e um dia fazer isso com a música e não com a arqueologia seria muito engraçado e vejo isso perfeitamente possível, se começar a pensar nisso com antecedência, o que não costuma acontecer porque vou um bocadinho para onde calha.

MDX – O The Legendary Tigerman diz que começou a convidar outros músicos para tocarem consigo porque se cansou de atuar sozinho, no seu caso continua a sentir-se bem assim como está?

Filho da Mãe – Tem dias. Há alturas em que eu gosto bastante de estar sozinho, mas há outras alturas em que sinto falta daquela troca que se dá no palco… mas eu tenho tocado com pessoas, não tenho uma banda, mas isso até pode acontecer… brevemente, tenho alguns planos disso. Eu estava habituado a tocar em bandas e de repente a coisa acaba por dar a volta e neste momento acho estranho tocar com banda porque estou habituado a tocar sozinho, é uma questão de hábito. Eu gosto muito de tocar sozinho, tem aspetos muito engraçados, conheces-te melhor e tenho conhecido coisas acerca de mim que não conhecia, exatamente por ser eu só. Percebo o Legendary, mas o estilo de música dele também é diferente do meu.

MDX – Enquanto guitarrista, quais são as suas maiores influências? Há alguém de que goste e que pouco tenha a ver com o seu estilo musical?

Filho da Mãe – Há vários, na verdade. Influências, tenho tantas que são difíceis de dizer. Eu tinha bandas que mais se catalogariam como bandas hardcore, que não tem nada a ver com o que eu faço. Mas antes de ter essas bandas, ouvia muito Carlos Paredes, que não tem nada a ver com as bandas de hardcore, e ele influenciou-me na maneira de tocar guitarra elétrica e agora influência a forma como toco guitarra clássica. Lembro-me sempre de Carlos Paredes, ouvia-o muito quando era miúdo, na faculdade… de resto, não tenho grandes heróis. Para além do hardcore, as coisas que mais me influenciaram foi a música africana no geral, desde coisas do Mali, do deserto, música angolana, cabo-verdiana, oiço isso muito desde miúdo. São referências muito estranhas e geograficamente mal relacionadas e isso tudo se mistura de alguma maneira.

MDX – Atualmente, Lisboa é um pouco o centro de tudo isso…

Filho da Mãe – Eu sinto isso cada vez mais e faz sentido. Nós tínhamos aquela idiotice dos descobrimentos… a música portuguesa parecia muito fechada a tudo, era a ideia que dava, ou ela era muito cuspida daquilo que se fazia lá fora ou era o fado e aquela coisa mais tradicional e isso não faz sentido porque Lisboa sempre foi um sítio de contacto de muitas pessoas e hoje, com o turismo e a imigração, continua a ser, e se calhar até mais ainda, e faz mais sentido a música portuguesa ser cada vez mais uma coisa que não se consegue definir do ponto de vista de onde vem, acho isso mais interessante.

MDX – Atualmente, qual é para si a importância da capa de um disco seu? Considera que com o regresso em força do vinil, as capas voltaram a ter a importância de outros tempos?

Filho da Mãe – São duas coisas diferentes. Há uma transição que é o que se faz do jewel case do CD para o digipack e isso já diz que o objeto voltou a contar um bocadinho mais. A capa é uma cara… e é importante e que dá muito gosto fazer, ter aquele disco quando se chega a casa. O vinil tem um formato diferente… mas quem gosta de música liga à capa da mesma maneira. As bandas em que eu toquei sempre deram muita importância às capas que faziam.

MDX – Ultimamente muito se tem falado do apoio do Estado à Cultura. Tem alguma coisa para dizer em relação a isso?

Filho da Mãe – Tenho duas coisas para dizer sobre isso. O que me interessa falar mesmo é do Teatro Maria Matos, que agora vai passar a gestão privada. Sendo que todo aquele trabalho que ali se fez durante tanto tempo corre o risco de se perder, porque não há interesse nenhum em dar continuidade àquilo que ali se fez. Aquilo para mim é um dos sítios mais incríveis em que eu toquei. É uma sala média com todas as condições para fazer este tipo de coisas. Eu acredito sempre que o investimento público na cultura nunca deve desaparecer, até porque há coisas que não vivem de vender bilhetes e não são piores por isso. Há bandas que se vendem completamente sozinhas e que têm um marketing poderoso, não são más por isso, mas funcionam nisso, mas há outras que não e que têm de ser dirigidas e que têm de ser vendidas. Há muitos produtores a trabalhar com investimentos públicos em Portugal, de fora de Lisboa, que basicamente são responsáveis por educar culturalmente as populações à volta, que normalmente não têm acesso à cultura. Nem tudo é rentável. Por outro lado, também não podemos estar sempre a gritar por subsídios, as pessoas têm que se fazer à vida e à estrada, pode haver um balanço saudável destas duas coisas.

MDX – Já há concertos marcados para a promoção de Água-Má?

Filho da Mãe – Há… tenho algumas datas na memória, Teatro Maria Matos a 8 de maio, no Ateneu Comercial do Porto a 9 de maio, e depois tenho concertos na Horta a 18 e em São Miguel a 19 e tenho a 24 no Teatro Aveirense. Estes são os concertos de maio logo de apresentação e depois há muitos mais marcados que vão sair. Mas estes são os primeiros.

MDX – E estará sozinho em palco, com a guitarra?

Filho da Mãe – Vamos ver. Essencialmente, Filho da Mãe tem a ver comigo sozinho no palco, isso é sempre a maior parte do concerto. Pode haver uns truques, mas será sempre surpresa.

Entrevista – João Catarino
Fotografia – Luis Sousa