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Mão Morta e o aniversário do melhor guia de viagens de sempre

As cidades não são o que parecem. Por detrás do lustre vistoso e das atracções para turista ver, escondem-se realidades sórdidas que ninguém ousa desvendar por receio ou repulsa. Ninguém, à excepção dos Mão Morta, que há 25 anos lançaram Mutantes S.21, o mais lendário diário de bordo da música portuguesa. O marco tem sido assinalado pela banda ao longo de 2017, relembrando-o na sua inteireza nos palcos nacionais e a penúltima paragem fez-se na Culturgest, em Lisboa. O espetáculo proporcionado teve tanto de musical quanto visual e traduziu-se numa experiência tão rica que no final da actuação quebraram-se os formalismos da sala e muita gente celebrou de pé este marco.

O parágrafo acima contém uma falácia facilmente identificável: não faz sentido falar de relembrança quanto àquilo que nunca foi esquecido. Mutantes S.21 tem feito parte dos concertos dos Mão Morta desde que foi lançado. Contudo, trazer ciclicamente a urgência de Berlim ou a libertação de Budapeste não é o mesmo que proporcionar a experiência de percorrer todo o périplo contido nas canções desse álbum, aos quais se juntaram temas da sua carreira que se adequassem à temática da urbanidade. Mais ainda: para não fazer deste 25º aniversário do Mutantes S.21 uma celebração banal, o conjunto bracarense decidiu dotar as suas performances de ilustrações criadas por 15 artistas nacionais a acompanhar as músicas, num espectáculo visual arquitectado por João Martinho Moura.

Isto induziu uma contradição curiosa, mas não necessariamente prejudicial. É que um dos grandes dons dos Mão Morta é a capacidade que Adolfo tem de conjurar universos por si construídos com as palavras bem medidas, tendo sido um exercício interessante confrontar as nossas imagens mentais com as iam surgindo nos ecrãs ao longo do concerto. O desafio foi iniciado com Shambalah (O Reino da Luz), tema ambiente nunca antes tocado ao vivo e cujas texturas alienígenas tiveram como pano de fundo silhuetas de enormes estruturas e de figuras humanas naquilo que pareceu ser uma concepção algo distópica desse mítico reino.

Sendo 15 os ilustradores convidados, o espectáculo pautou-se por uma enorme variedade gráfica entre as músicas. O teor macabro de Paris foi bem representado pela criatura enigmática tipo mimo, desenhada a preto e branco, com a sua mão retorcida a segurar uma piteira, assim como as figuras rabiscadas estilo-DIY foram ao encontro do espírito de libertação contracultural de Budapeste ou ainda a cena de bordel indecentemente imaginada a banda desenhada de Velocidade Escaldante. Noutros casos, escusamo-nos de comentar o que vimos, como em Amesterdão, por não fazermos porra de ideia o que eram aquelas estruturas retorcidas e meio orgânicas. Ainda assim, grande tema, magistralmente tocado, como sempre.

Importante é também referir que não mudou apenas o conteúdo, mas também a forma em si mesmo como as imagens surgindo na enorme tela atrás da banda se foram adaptando à música. Outro dos temas a estrearem-se nos palcos, Marraquexe, por exemplo, teve a sua grande imagem da Praça das Moscas Mortas a ir sendo revelada por flashes enquanto a banda entrava no seu groove sinuoso e Adolfo entrava em delírios febris. Já Até Cair, que se lhe seguiu, teve os mesmos retratos noir ao estilo Frank Miller (onde se incluiu “a mulher disforme, de cara esborratada”) a repetirem-se freneticamente, dando resposta ao ritmo da música.

Apesar da primazia da componente visual que lhes servia de cenário, não quis isso dizer que a banda passasse para segundo plano. Quando falamos em Mão Morta e presença de palco, bem se sabe que na verdade estamos a falar de Adolfo, que manteve-se igual a si mesmo e um natural íman de atenção, como no tradicional final dramático e banhado por luzes vermelho sangue de Berlim (um dos mais evidentes exemplos da tal dissonância entre cena imaginada e o que a banda trouxe consigo enquanto representação). O carismático vocalista não falou muito entre músicas, mas quando tal aconteceu, fê-lo com o seu característico sarcasmo, como quando perguntou porque estava toda gente a fazer sala num espaço como a Culturgest. A provocação não ficaria sem resposta, como veremos.

A viagem pelos recantos mais indesejáveis destas cidades caminharia para o seu fim, com um prometido encore de diferentes canções à vista. Mas antes, a banda fez a sua última escala por entre as Sombras e Lixo de Lisboa, tema que merece uma menção especial. Ao contrário de há 25 atrás, já não há assim tantos táxis a irem em direcção ao Casal Ventoso, nem o Cais do Sodré é um habitual pousio de marinheiros e prostitutas. Nesse sentido, as imagens que demonstram essas personagens marginais serviram para mostrar como a capital mudou, não sendo este o espaço para deliberar se para melhor ou pior. O que é interessante ressalvar é a figura dos corvos gigantes a depenicar a carne dos seus habitantes moribundos com voracidade carnívora, espécie de metáfora para como esta cidade nos consome sem piedade. Aí sim, podemos afirmar com autoridade, que nada mudou.

Seguiram-se momentos que atestam a magia do espectáculo ao vivo e da empatia que uma banda pode gerar junto dos seus fãs, de longa ou de curta data. É que o primeiro encore correu exactamente sob os conformes: Tiago Capitão, tema que conta a história desse «grande filho da puta», terminou de forma épica com um coda deliciosamente encabeçado por Miguel Pedro; Fazer de Morto, ode às «belas artes», aligeirou o ambiente com o seu equilíbrio agridoce até Bófia terminar com sanguinolência e Adolfo combalido no chão depois do metafórico e violento encontro com a autoridade (nota especial para as ilustrações cruas protagonizando agentes completamente desumanizados nas suas linhas de escudos e equipamento de motim). A questão é que durante estas três músicas, os ânimos se foram exaltando, com os presentes cada vez mais desejosos de se levantar das suas cadeiras e curtir Mão Morta com a libertação de energia que a música do conjunto pede. Cânticos a entoar a 1º de Novembro sucederam-se depois da banda sair do palco, tendo regressando pouco depois, mas não para cantar esse tema. Em seu lugar, Véus Caídos e E Se Depois arrancaram (quase) toda a gente da sedentariedade e uns quantos até foram para o fosso abanar os corpos. Um fim digno para celebrar Mutantes S.21. Numa fase onde as grandes mentes do marketing turístico procuram novas soluções para atrair/endrominar visitantes através do prisma do “típico” e da “genuinidade”, esquecem-se de que a sua demanda é absolutamente inútil: o melhor guia de viagens já foi criado e é irrepetível.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Ana Pereira