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Os Salmos Apaixonantes na Missa de Father John Misty

Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.

Falar de amor, falar de paixão, falar de sentimento é tarefa ingrata: diz-se tanto mas acaba-se por dizer pouco. É impossível pôr em palavras aquilo que sentimos, no fundo do nosso ser, na sua totalidade pela pessoa de quem gostamos. Não dá, faltará sempre algo a mais para dizer. Nesta batalha por palavras, onde tentamos pôr em meia-dúzia de letras sentimentos tão intensos que dificilmente conseguem ser descritos, acabamos por nos tornar ridículos e redundantes, mas foda-se se não sabe bem sê-lo dentro desses moldes, o de um apaixonado incurável.

Há uma mística inexplicável em Josh Tillman: uma persona facilmente identificável, um orador para as palavras românticas que tantas dores de cabeça nos causam por não se saber como alcançá-las. De certa forma, Father John Misty – nome com que Josh assina de há cinco anos para cá – é um pregador de amor dos tempos modernos, um poeta de fácil alcance, um padre que abre o caminho para que os seus fiéis o percorram… enfim, chamem-lhe o que quiserem, mas este homem tem algo de diferente.

A personagem que Josh construiu à volta de Father John Misty tem vindo, ao longo dos últimos anos, conquistando cada vez mais súbitos, crentes de amor, especialmente depois do lançamento do muito aclamado I Love You, Honeybear, de 2015. Dois anos passados e mais um excelente álbum viu a luz do dia, Pure Comedy, e foi em prol do mais recente disco que Father John Misty se apresentou, pela primeira vez, em nome próprio em Portugal, com o Coliseu dos Recreios, praticamente esgotado, a ser a sala anfitriã para celebrar o momento.

Antes de a missa de segunda-feira ir à avante, Weyes Blood encarregou-se de assegurar a primeira parte da noite, antecedendo uma noite que em tudo teria para ser bela. Para alguém cuja aparência se assemelha a de uma pequena boneca de porcelana, Natalie Mering demonstra que um livro não deve ser julgado pela sua capa a partir do momento que solta o seu timbre de registo grave q.b. mas que consegue, ao mesmo tempo, enfeitiçar e prender-nos pela sua pop psicadélica. Um momento bonito, sim, mas que acabou por perder o seu encanto face a toda a massa humana que se preocupava mais em ir ocupando todos os vácuos de espaço que o Coliseu dos Recreios tinha.

Só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

No primeiro instante em que a criatura Josh Tillman pisa o palco, acompanhando da sua competente banda de apoio, o Coliseu dispara por todos os lados, tal não era a euforia em acolher Father John Misty. Como padre que afirma sê-lo, começa o concerto com o seu salmo “Pure Comedy”, faixa inaugural do novo disco, e logo aí vê-se o poder que este homem tem em tocar no coração do povo: enquanto uns levam as mãos à cara ao acompanhar todas as palavras soltas por Josh, outros simplesmente fecham os olhos e deixam-se guiar pela força de uma balada que podia facilmente ser feita a pensar ‘naquela’ pessoa em concreto. É aqui que reside a magia em Father John Misty: um compositor de canções que consegue fazer canções tão facilmente identificáveis em que qualquer um consegue associar a canção X ao momento Y e tê-la como “sua”.

Mesmo com um repertório ainda algo de escasso – três discos onde o segundo foi praticamente tocado na íntegra na passada segunda-feira – a verdade é que Josh Tillman tem músicas capazes de deixar a mossa emocional que dez regulares o fariam. Para brindar o apetite dos seus fiéis, foram várias as baladas de Pure Comedy que ecoaram pelos corações do Coliseu – “Total Entertaiment Forever”, “Things It Would Have Been Helpful to Know Before The Revolution” e “Ballad of The Dying Man – mas foi com vestígios dos álbuns mais primórdios, representados por “Nancy From Now On” e “Chateau Lobby #4”, que o público começou a reagir de uma forma mais efusiva, quase travessa, perante as preces de um entertainer que estava mais disposto a sensibilizar do que a entreter.

Quem me dera no tempo em que escrevia sem dar por isso cartas de amor ridículas.

Seremos nós ridículos por embelezar o que é o amor? De o colocar num pedestal quando consegue ser dolorosamente avassalador? As paixões podem ser tão fugazes e efémeras como um foguete que tão rapidamente se dissipa pelos céus depois de ter alcançado o auge da sua beleza, mas foda-se, a intensidade com que as vivemos faz com que a dor seja superável, faz com que a beleza dos momentos e dos instantes perdure para sempre com um carinho inigualável. Seja através de uma eletrizante “True Affection”, cujo toque eletrónico benzeu-nos pela sua frescura, ou a arrepiante e emocional “Bored in The USA”, Father John Misty tem um dom de conseguir imortalizar momentos de mágoa, sofrimento e de tristeza em canções tão bonitas que, tal como o amor, conseguem ser imortalizadas para sempre através da sua beleza pura e inocente.

Ao construir um alinhamento que tão bem conjuga o melhor dos três discos de carreira, Josh Tillman mostra o quão versátil e talentoso é enquanto artista, mas verdade seja dita, já o vimos bem mais audaz e interativo para com o seu público devoto, sendo este o único ponto possível de se criticar numa atuação que de resto foi impecável. Mesmo que a vertente mais atrevida tenha aparecido depois do encore, onde desceu até ao fosso do Coliseu para abraçar algumas fãs ou permitir que uma fosse mais além e lhe tocasse na (grandiosa) barba, o Josh que aquela noite precisava foi exatamente aquele que encantou corações em mais de uma hora e meia de concerto: reservado e distante, mas cheio de confissões amorosas para fazer, de aconchegar e consolar tanta as almas sós como as preenchidas que procuravam conforto naquela fria noite de Novembro.

Com o final do concerto cada vez mais iminente, os apaixonados brindavam-se com beijos apaixonados e ternurentos ao som de “Real Love Baby” ou “Holy Shit”, enquanto os descomprometidos se deixavam emocionar e contemplar o quão belo, o quão emocional um par de canções consegue ser quando, para além de ser cantado do coração, as palavras pregadas são todas sentidas pelo seu intérprete. Este momento atingiu a sincronização perfeita quando o tema mais esperado da noite e possivelmente uma das melhores canções de amor dos últimos tempos finalmente surgiu, com “I Love You, Honeybear” a ser o auge de uma noite que em tudo teve de belo.

A verdade é que hoje as minhas memórias dessas cartas de amor é que são ridículas.”

Deixem-nos ser ridículos. Deixem-nos sonhar com um passado que já lá vai. Deixem-nos imaginar um futuro inalcançável. Deixem-nos viver dentro das memórias do primeiro sorriso que nos faz perder dentro do mesmo para sempre, ou do primeiro beijo que fez o mundo parar. Deixem-nos viver na indecisão entre o que está certo e o que está errado. Deixem-nos prolongar as conversas pela noite dentro. Deixem-nos ser ridículos, porque só assim é que seremos felizes. E foda-se, sabe tão bem sê-lo.

Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Ana Pereira
Promotor – Everything Is New