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Mayhem, Demoníaca Liturgia

“What a time to be alive” é um meme que se propagou com o intuito de sarcasticamente reagir ao absurdo que é a vida moderna, mas aqui podemos aplicá-lo sem segundas intenções. Sorte a de quem respira e é dotado de consciência para celebrar o tomo do mal que é De Mysteris Dom Sathanas ao vivo, duas décadas volvidas após a sua podre criação. Os Mayhem, instituição absoluta do Black Metal, empunharam as negras tochas do movimento numa noite em que mais uma vez celebraram os oito lendários temas do seu álbum de estreia, acompanhados por um elenco que soube acompanhar a sua intensidade no Lisboa ao Vivo.

É deselegante referimo-nos a bandas portuguesas como que “preparadas para outros voos” pois a expressão dá a entender que o que se faz por cá não costuma ter qualidade suficiente para tal, o que não é verdade. Contudo, pelo traquejo, a desenvoltura e, acima de tudo, os malhões que os The Ominous Circle apresentam no seu Appalling Ascension, é com facilidade que os vemos a percorrer globo espalhando negrume. O quinteto é composto por veteranos da cena portuguesa cujos nomes não vamos revelar, até porque mesmo tendo aderido à moda da ocultação facial alá Mgla, uma célere pesquisa no Metal Archives revela as suas identidades. O que aqui concerne é a brutalidade com que atinge o seu Death/Black Metal, com a atonalidade típica do primeiro a mesclar na perfeição com a toada ritualística do segundo, numa excelente primeira parte a abrir o apetite.

Seguiram-se os Dragged into Sunlight que, mesmo dando um concerto respeitável, redundaram em desilusão. Sem as características balaclavas, de costas voltadas para o público e com uma apresentação cénica de invejar muitos musicais, martirizaram o ajuntamento cada vez maior de fãs e curiosos com a sua mistura abjecta de Black Metal e Sludge. Em teoria a coisa tinha tudo para funcionar: uma sonoridade espástica, cocktail putrefacto que escorre das chagas abertas dum heroinómano satânico, a dever tanto aos senhores que lhes seguiriam como a Eyehategod ou a Acid Bath, tocada a mil rotações. O problema é que os britânicos não mostraram em Lisboa a dinâmica presente nos seus álbuns, reduzindo a sua actuação a um metralhar constante. Como um rinoceronte baleado sem o tiro ser fatal, os Dragged into Sunlight mostraram doses de agressividade elevadíssimas mas míopes, com excesso aliado à falta de foco a traduzir-se num anestesiar dos sentidos – até um martelo pneumático, com tempo, se torna em ruído de fundo. Que voltem com os Primitive Man e com outra setlist e alguém vai acabar morto no meio da plateia.

 

Por fim chegou o momento dos Mayhem subirem ao palco com De Mysteriis Dom Sathanas, acção cuja significância se desdobra em múltiplas vertentes: uma sessão de comunhão maligna, uma aula de história, parte do corpus num caso de estudo do esgotamento perante as maravilhas da revolução tecnodemocrática e dos valores judaico-cristãos no Ocidente. Porque se hoje em dia há quem se socorra de memes para desconstruir tudo à sua volta, nos anos 90 houve um conjunto de putos noruegueses que reagiram a esse sufoco com violência sónica, por vezes literal. “Maldito” é um adjetivo que peca por defeito para descrever De Mysteriis Dom Sathanas; afinal de contas, este é um álbum que contou com os préstimos dum vocalista suicida que rebentou os miolos à caçadeira, dum guitarrista e dum baixista, respetivamente assassinado e assassino. Infâmia à parte, este foi também um dos tratados que ajudou a arquitectar a segunda vaga de Black Metal.

Da formação dita “clássica” sobem ao palco o baterista Hellhammer, o baixista Necrobutcher e o vocalista Attila Csihar, este último com corpsepaint a fazê-lo parecer um cadáver ambulante (ainda bem, atente-se). São acompanhados por Ghul e Teloch, guitarristas de créditos firmados que ajudaram a proporcionar o ambiente para um concerto/performance que teve tanto de musical quanto teatral. Antes do texto panegírico que se segue, apenas dois senãos: Funeral Fog e Freezing Moon, dois clássicos absolutos, não mereciam ser manchadas por problemas de microfone, mas se este problema é daqueles contratempos que acontecem aos melhores, mais facilmente evitável teria sido a contínua necessidade de alguns de captar todo o concerto com os telemóveis no ar, não obstando a banda ter pedido expressamente para não o fazer. É que se por norma é incomodativo, num concerto destes, onde o aspecto cerimonial é crucial, quantos mais ecrãs no ar mais se quebra essa aura de encantamento.

Não obstante, o que os Mayhem proporcionaram durante perto de uma hora foi uma lição de convicção, das raras ocasiões onde a pantomina não é recebida com escárnio mas com adulação, assente em temas que não perderam vitalidade (ou propositada falta dela) com o decorrer dos tempos. Aos dois temas acima mencionados, vagas de riffs cortantes sobre blastbeats precisos passíveis de deixar a alma num estupor, seguiram-se outros: a inclemência de Pagan Fears, a valsa moribunda de Life Eternal (bonito oximoro, é verdade) que coloca em evidência o baixo de Hellhammer ou o assalto de Buried by Time and Dust, onde Attila com o diabo no corpo, ora prostrou-se perante o altar colocado ao centro do palco, ora desdobrou-se em gestos profanos. O final espectacular foi assinalado com a faixa título após uma minúscula pausa, lamúrias coexistentes com venenosas cuspidelas enquanto a banda vergastava o público uma última vez. Quando tudo acabou, Attila Csihar voltou a si e tratou de agradecer ao público com genuíno apreço – compreende-se, um sacerdote sabe que não é nada sem os seus acólitos.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Marta Louro
Promotor – SWR Inc.