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Indignu, o arrepio da essência

Os Indignu são de Barcelos denominados como uma banda pós-rock em que a maioria dos músicos tem formação musical. Talvez pela localização geográfica, nos últimos sete anos apenas actuaram em Lisboa 2 vezes (uma terceira num Sofar Sounds Lisboa). Em Janeiro no palco do MusicBox e no final de Maio no Sabotage Club. Nós estivemos no Sabotage e não podíamos deixar de partilhar convosco os momentos magníficos da “despedida” do último álbum “Ophelia” e do seu antecessor (ópera-rock) “Odyssea”. Com as nuvens brancas como cenário, a banda de Afonso Dorido (compositor e guitarrista) deixou a intimista sala do Sabotage em modo freez, tamanha a magnificência das suas músicas.

Guitarra com arco de violino, que provocou de imediato um arrepio em todos os fragmentos de pilosidade no corpo. Guitarra de Afonso Dorido em tom de lamúria que contou os feitos heroicos, deixando a 2ª guitarra e o baixo suspensos nas suas dúvidas. Ao intercalar os ritmos, ora agudos ora graves, foi dando espaço às outras cordas para que contassem também as suas glórias na “Montanha Negra”.

Os acordes de Afonso caminhavam sozinhos em pequenos passos. Um estrondo apoteótico direccionou o rumo. Juntou-se então o violino, que aos poucos desbravou as arestas pontiagudas da destroçam da guitarra. Dominou o ritmo e clamou a tranquilidade, numa tentativa desesperada de manter a ordem. Respiraram numa atmosfera lúcida, a mesma onde todos os instrumentos foram desaguar. Uma aurora raiada de luz em “Santhiago do Schiele”.

O ritmo da bateria em passadas monocórdicas segurava o chiar das cordas, que logo se silenciaram no acordar do violino. Dedilhar do Afonso que inclinou o peito sobre a imensidão dos sons, que num disparo de flecha se uniram. Ficámos suspensos naquele limbo de acordes entristecidos. Mantivemos os olhos fechados e suspirámos na perfeição do violino. As nuvens alinhadas no palco num azul bucólico, fizeram-nos acordar com um sorriso esperançoso no rosto, ali “Onde as Nuvens se Cruzam”.

Deambularam sobre os dedos a coragem das caravelas que se aventuraram no mar alto. Uma narrativa sóbria, onde os instrumentos tomaram corpo individualmente. Uns acordes de guitarra portuguesa que encheram de orgulho a subtileza do baixo. Rendidas ao compasso de espera do violino, contornaram o cabo das tormentas e mantiveram-se erguidas na grandiosidade da sua identidade. “Caravela na Ponta dos Dedos”.

Sem receios e quase de rompante, as cordas eléctricas entregaram-se na velocidade das baquetas da bateria. Nas costas das ondas, surgiu o dedilhar da guitarra a querer gritar mais alto. Mas rapidamente foi apanhada no cerco do violino, que por momentos deslizou sozinho na sua imponência. As teclas tentavam a medo romper o cerco e, aos poucos, num diálogo humilde mas firme, ganharam espaço e convidaram as guitarras a caminhar com elas lado a lado. Seguiram em uníssono rumo ao Norte, sem primazias ou egos insuflados, em harmonia perfeita no “Mar do Norte”.

Afonso Dorido (primeira guitarra) apresenta os Indignu. O convidado nas teclas o Sérgio, o Jimmy (segunda guitarra), o Miranda (bateria) a Graça (violino), o Pedro (baixo). Continuam na ópera rock (Odyssea) e com “Chovem Pedras de Fogo no Céu”.

No chilrear de uma das guitarras, segredou o violino que o céu se pusera em chamas. No espaço de um silêncio, refugiaram-se na bateria que os levou para de trás do crepúsculo, numa tentativa de os manter protegidos. As pedras caíram numa dança ziguezagueada deixando rastos de cinza nas teclas, as que lamuriaram o sofrimento do violino.

Trocaram de lugar e de instrumentos, os bons músicos têm esta versatilidade. Graça nos samplers, Jimmy nas teclas, Pedro na guitarra. Nesta altura já todos estávamos em anestesia colectiva. “Jerusalém” envolveu-nos numa catarse apoteótica, com os samplers a esbaterem-se nos arrepios das cordas. As teclas em sintonia com a bateria preparavam as subidas majestosas das guitarras, que por momentos se fixavam nas pedras sagradas do muro das lamentações.

O choro constante das teclas ali ficou, a lembrar que o sofrimento é Vida. As guitarras prometeram ser cúmplices num arrastar das almas. Carregaram a dor de um povo, levaram-lhe a esperança numa oração profunda. “Santa Helena” é um hino à beleza pura da tristeza, um tributo à profunda e majestosa existência da Humanidade. Poderia ser a banda sonora de Guernica, ou a chegada do homem à Lua. É o respirar de um recém-nascido, é o latejar dos vasos sanguíneos, é a dor maravilhosa de um parto. É o universo no seu estado puro.

No encore surgiu ainda “Rafaela” tema do primeiro álbum e, segundo Afonso, esgotado com a venda do último exemplar nesta mesma noite. A música de Indignu é uma viagem às constelações do universo, um descarno de alma, um arrepiar da essência. “Ophelia” despediu-se mas sabemos que o álbum que se segue será certamente mais uma obra sublime.

Texto – Carla Sancho
Fotografia – Ana Pereira