20170603 - Concerto - Elza Soares @ Coliseu dos Recreios
Concertos Reportagens

Elza Soares, A Diva que só quer cantar

“Meu choro não é nada além de Carnaval, É lágrima de samba na ponta dos pés”. É com este ponto de partida que se começa aquela noite grandiosa que a Elza Soares ofereceu no passado sábado, no Coliseu dos Recreios. A noite revelou-se grandiosa, um pouco à imagem do que se passou em novembro passado, quando a carioca atuou no mesmo espaço, no Vodafone Mexefest.

20170603 - Concerto - Elza Soares @ Coliseu dos Recreios

Desta vez, o Coliseu não esteve cheio. Longe disso. A plateia sentada ocupava três terços, quanto que o resto das bancadas e camarotes nem sequer ficaram com acesso ao público. Mas esses detalhes pouco importam. Quem estava ali é porque queria. Porque conhecia a mulher, a história, a luta (essa palavra que faz tanto significado que quase se transforma num sinónimo para Elza).

Conhecer a voz, conhecer as letras e saber o que aquela pessoa, sentada no meio do palco, passou e que agora ainda consegue sensibilizar, emocionar e encantar por onde passa, no alto dos seus 79 anos.

Às escuras, é na voz de Elza que ouvimos as palavras de Oswald de Andrade, com o Coração de Mar. Pessoas de pé, palmas e gritos. Mas é com A Mulher do Fim do Mundo que exaltamos mais. É onde é apresentada as cartas do jogo, as intenções da Elza para aquela noite que quer que seja especial. Por algum motivo, este espectáculo já foi premiado tantas vezes, por algum motivo a Elza foi considerada pela Pitchfork como a Voz do Milénio. É por ela querer cantar.

“Quero gritos”, palavras de ordem da Elza que são obedecidas com toda a euforia e que fazem com que o Coliseu pareça cheio, pelo menos no que toca às vozes do público. É assim n’O Canal, na Luz Vermelha, no resto do concerto.

20170603 - Concerto - Elza Soares @ Coliseu dos Recreios

Quem conhece a história de vida de Elza Soares, sabe também dos problemas que experienciou por causa da sua raça, género e com o contexto social e político que o Brasil atravessou na segunda metade do século XX, com a ditadura militar, que a obrigou a exilar-se como tantos outros artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Por isso mesmo, este álbum, A Mulher do Fim do Mundo é quase todo um flashback a algumas das lutas que atravessou e que agora tem toda a liberdade e espaço para gritar, mostrar e não esconder. Um dos primeiros problemas sérios e reais mostrados na voz da Elza foi o da raça negra (não a banda), com A Carne (retirado do álbum de 2002, Do Cóccix até ao Pescoço). Com o verso “a carne negra é a mais barata do mercado”, é ecoado pelas paredes do Coliseu que o racismo é um problema real. Seja no Brasil, seja em Portugal ou em qualquer parte do mundo.

Por ser uma voz fora da sua geração, tornou-se ícone das lutas do empoderamento feminino, um dos temas mais actuais. Inconformada com o tema “bela, recatada e do lar”, dá voz a um Brasil que deseja ser livre do conformismo e conservadorismo. Quer que acabem as questões de violência. A história de Maria da Vila Matilde é essa, no final com todas as pessoas a cantarem o “cê vai se arrepender de levantar a mão para mim”. Várias vezes, e com o conselho final da Elza. “Liga 116006. Vamos acabar com isso. Mulheres, gemer só de prazer.”

20170603 - Concerto - Elza Soares @ Coliseu dos Recreios

A liberdade sexual, outra das bandeiras de Elza não é deixada de parte, principalmente neste último álbum, e neste concerto, quando ouvimos o Pra Fuder (o título já diz tudo) mas também o Benedita, que ao início retrata a singularidade da história de uma travesti e a sua perseguição por parte das autoridades e a dependência do crack. A voz de Elza continua não se apaga nem se fragiliza, bem pelo contrário.

Acompanhada por uma banda composta por paulistanos e liderada pelo baterista e compositor Guilherme Kastrup, seguimos em direção ao fim, ao ritmo do samba do Malandro ou Solto. A primeira despedida faz-se ao som da Comigo, que é também o fim do último álbum. Mas sabemos que existe encore. Grita-se mais um pouco. Ouve-se mais uns “Fora Temer” que já tínhamos ouvido e aplaudido a meio do concerto.

20170603 - Concerto - Elza Soares @ Coliseu dos Recreios

Ela regressa ao palco, ou como quem diz, sobe a tela de novo. Lá está a Elza, sentada, a dar sentido à palavra “diva” tantas vezes gritada nessa noite. Tudo para ouvir Volta para Cima e Pressentimento. Aplausos de pé, despedidas porque ninguém sabe quando é que voltaremos a vê-la e ouvi-la em Lisboa (para já, só na sexta no Primavera Sound, no Porto).

Podemos é ter certeza de que ela vai levar a sua avante até ao fim. “Eu vou até ao fim cantar, me deixem cantar até ao fim”.

 

Texto – Carlos Sousa Vieira
Fotografia – Luis Sousa
Promotor – Ao Sul do Mundo, CRL