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The Divine Comedy, ambientes napoleónicos no conforto irlandês

A chuva caíra intensamente em Lisboa, ao início da noite do passado sábado. Mas apesar de algumas “molhas”, no Teatro Tivoli BBVA o ambiente esteve seco e muito acolhedor. Um teatro à pinha, crianças, velhos, adolescentes, um punhado de jovens irlandeses pendurados nos balcões dos camarotes. O palco, que inicialmente se apresentava minimalista, segurava as muitas guitarras acústicas no equilíbrio do encosto umas das outras. Um globo de madeira com o mapa-mundo da França napoleónica (suponho) colocado no lado esquerdo do palco, perto dos dois teclados.

Passavam poucos minutos das 21h, quando uma rapariga morena de saltos ligeiramente agulha e uma saia rodada, entrou em palco acompanhada por um outro músico (guitarrista), que se manteve sentado à sua direita. Lisa O´Neill, cantora folk irlandesa acompanha os The Divine Comedy nesta digressão europeia, de lançamento do 11º álbum de originais “Foreverland”. Com um humor apurado, Lisa apresentou as músicas com piadas inteligentes (não fosse oriunda de terras de sua majestade). Entre músicas originais, lá saiu uma irish song em que Lisa “à capela” puxou os agudos fazendo acompanhar o pé esquerdo no ritmar da batida.

Pequeno intervalo para a mudança de cenário, e uma tela enorme caiu sob o lado esquerdo do palco. Uma figura feminina da corte do Imperador Napoleão Bonaparte, entre pinceladas de cores quentes e aconchegantes. Focos vermelho-veludo em círculo por detrás dos músicos, completavam o ambiente de conforto palaciano. Um conjunto de 5 músicos entrou no palco e ajeitou-se aos instrumentos, guitarra, baixo, bateria e duas teclas. Neil Hannon, sob a sua figura timidamente singela, personificava o próprio Napoleão Bonaparte (figurinos e cenários que espelham os videoclipes de alguns temas de “Foreverland”). Botas altas pelos joelhos seguravam as calças brancas e, num gesto delicado (muito diferente de Napoleão, portanto) tira o chapéu triangular no início do segundo tema, “Princess”. Uma das teclas deu lugar ao acordeão e Neil intercalava a letra com a harmónia. “Resolvi alterar o alinhamento, sou um tipo espontâneo”, disse a rir enquanto olhava para a setlist que estava no chão junto ao copo alto de vinho tinto. E assim foi, recuperou-a (a setlist) ao sexto tema em que nos desafiou para fazermos um pacto com ele, “The Pact”. Até esta altura, andou a saltitar de temas do último álbum e outros dos mais antigos, inclusive o single de “Foreverland” que foi tocado logo no inicio, “How can you leave me on my own”, fazendo agitar os ombros do público. Apesar da dificuldade acrescida para quem escreve a reportagem do concerto, a mudança do alinhamento foi francamente inteligente. Divido em dois momentos distintos, em que a própria mudança de figurino no oitavo tema o evidenciou. Os três temas seguidos do último álbum pareceu um pouco exagerado até ao próprio Neil que a dada altura diz “vocês aguentam!”

Entre a primeira e a segunda parte do concerto, Neil abandona o palco e deixa os seus músicos a tocar um tema instrumental, onde se ouvia uma gravação de voz masculina em espanhol. Regressa com um figurino bem diferente, fato e gravata pretos, chapéu redondo na cabeça e um chapéu-de-chuva a fazer de bengala, qual Charlie Chaplin dos tempos modernos (álbum “Bang goes the Knighthood”). A partir daqui foi toda uma encenação, uma completa actuação performativa no corpo e nas métricas vocais. Uma envolvência do público ao mais ínfimo pormenor dos seus movimentos. Uma capacidade de contar e cantar estórias, com uma intuição e dicção que nos projectou para todos os cenários, todas as personagens, os beijos apaixonados e as lágrimas de um “broken heart”. O público reagiu logo aos primeiros acordes de um dos temas mais conhecidos da banda, “Generation Sex”. A tocar pandeireta sentou-se à frente da bateria com pouco entusiasmo, talvez exactamente por ser o tema mais popular e saber que o público organicamente faria a festa. Com o microfone na mão, saiu do palco desceu as escadas e sentou-se no único lugar vago na primeira fila. Cantou para a mulher que tinha ao seu lado direito, a simular um encontro (“Our Mutual Friend”). Tranquilamente levantou-se e deitou-se no corredor da plateia. Ao dirigir-se para o palco simulou um cambalear de ressaca enquanto procurava uma casa-de-banho (“I woke up the next day all alone but fora a headache. I stumbled out to find the bathroom.”) Mesmo sem os violinos, o acordeão manteve o glamour desta canção, que fez com que fosse um dos momentos altos da noite. Um interlude para servir dois copos de vinho tinto retirados do bar mapa-mundo e receber Lisa O’Neil. Sentados em bancos altos, em dueto cantaram “Funny Peculiar”. Lisa deixou o placo e Neil manteve-se sentado a meio de uma circunferência de luz baixa. Dedicou o tema aos irlandeses que estavam na sala, que se fizeram imediatamente notar em “Songs of Love”. Seguiram-se temas mais mexidos em que as guitarras acústicas deram lugar às elétricas e que puseram o público de pé, “Alfie”, “At the indie disco” e “I like”.

Um encore em mangas de camisa, com uma mancha de suor saliente nas costas. Um sorriso meio de gozo num “Amo-vos Portugal” tirado do Google translator. Mais uma vez o vinho como adereço performativo, mas desta vez já sem copo bebeu pela garrafa enquanto cantava o tema “ Drinking” (avisou que escreveu este tema antes do Brexit!). Como já é habitual nos seus concertos, Neil Hannon terminou com a esperança e felicidade, “Tonight we fly”.

The Divine Comedy é um fenómeno da música britânica, pela presença mais ou menos continua na discografia e nas tournées europeias. Não é fácil manter a qualidade e uma identidade forte, quando os músicos não se mantêm como banda coesa. Mas Neil Hannon tem essa capacidade extraordinária de ser um artista multifacetado, como compositor, músico, vocalista e performer. Os seus concertos são uma narrativa performativa e literária, transcendendo o palco, a sala, o público e ele próprio. Um artista único, imenso.

Texto – Carla Sancho
Fotografia – Ana Pereira
Promotor – Everything Is New