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O regresso infernal dos Behemoth

Parte do périplo blasfemo para espalhar a boa (má?) nova de Satã pela Europa, os Behemoth voltaram, 15 anos depois, a um Paradise Garage agora demasiado diminuto para os receber. A monolítica entidade de Death/Black Metal, encabeçada por um revigorado Nergal, brindou a sala lotada com hinos de ocultismo, tendo deixado bem claro porque é que são um dos nomes superlativos do que se faz no espectro mais extremado da música pesada.

Antes de mais, há que dizê-lo, marcar um concerto para as 19:30 num dia de semana, mesmo tendo em conta a logística que as bandas (provavelmente) impõem, é uma ideia infeliz. Correr para Alcântara após mais uma jornada de trabalho, não tendo sequer tempo para jantar e deparar-se com uma enorme fila à porta do Garage é uma demanda amarga. Ninguém merece enfrentar o vazio existencial dos Mgła de estômago vazio, mas essa foi a dura realidade para muitos dos que se dirigiram para a conhecida sala de espectáculos.

Se não tiverem reparado, a banda acima mencionada tem um caracter esquisito. Isto é porque os Mgła são polacos, o seu nome pronuncia-se “mgwa” e quer dizer neblina, mas no Paradise Garage traduziu-se, na verdade, numa tempestuosa sessão de Black Metal sem tréguas. Vestidos como um conjunto de Deadpools motoqueiros, M. e Darkside (acompanhados por músicos de sessão) obscurecem a sua identidade por detrás de máscaras, assim como refutam as verdades universais da existência, empestando a atmosfera de um vazio arrepiante. O seu Black Metal não é atípico, rege-se pelos formalismos, mas fá-lo com elegância, entre a fustigação impiedosa e as melodias sublimes. Onde os Mgła fogem à norma é na sua ausência de espiritualidade, entregando-se à negação como bussola desnorteada do destino. É inútil falar de temas em particular, até porque os Mgła assinam as suas músicas com o nome do seu álbum precedido de numeração romana, obstando apenas dizer que deram um concertão e até mereciam tocar a outra hora.

O mesmo não se pode dizer dos Secrets of the Moon, que podem ter desvendado os mistérios desse elusivo astro, mas não descobriram o truque para manter o nível deixado pelos seus vizinhos. Atenção, com isto não se pretende acusar os alemães de terem dado um mau concerto, foi competente e energético a espaços, mas a sua entrega muito limpinha, com falta de sal até, não deixou grande marca. O início particularmente chocho de Here Lies the Sun trouxe à imaginação o que seria se os Katatonia experimentassem tocar Black Metal e foi nessa toada inofensiva que o seu concerto se foi arrastando, especialmente pela insistência do frontman sG em utilizar um registo entre o limpo e o gritado. Com a ocasional arrancada mais venenosa e uns quantos riffs que ficaram na memória, os Secrets of the Moon só mostraram realmente a razão pela qual ali estavam quando terminaram com Lucifer Speaks. De resto, um nome como Batushka teria resultado melhor para manter o ritualismo.

Talvez seja cínico dizê-lo, mas há males que vêm por bem. O caso de leucemia que afectou Nergal, forçou a banda a um hiato de 5 anos entre Evangelion e The Satanist, o que, se por um lado foi uma provação complicadíssima para o músico, por outro, teve como consequência um refrear numa altura em que os Behemoth ameaçavam esgotar a sua fórmula. Ponto de viragem para o conjunto de Gdańsk, The Satanist flectiu a sonoridade de volta ao Black Metal, resultando num conjunto de canções mais fresco e mais negro, com um sentido melódico mais apurado, mas nem por isso menos pesado. Ao contrário do que o que a banda fez em Vagos há dois anos atrás, aqui os Behemoth apresentaram o álbum de uma ponta à outra, com a pompa e circunstância cénica que este exigiu.

A entrada em palco de Nergal com tochas em chamas serviu de introdução para Blow Your Trumpets Gabriel, tema em crescendo que desembocou numa descarga tão devastadora quanto as trombetas que abalaram Jericó. Pela natureza da sala, que se presta a deixar o som das bandas algo indefinido, temia-se que a sonoridade dos Behemoth perdesse contundência, o que acabou por acontecer. Mas se a tarola de Infernus soava tímida e o Baixo de Orion deixou de se ouvir várias vezes ao longo da noite, nem por isso esses contratempos foram capazes de conter a fúria de Messe Noire, Ora Pro Nobis Lucifer ou do tema título. Após distribuir hóstias numa acção deliciosamente herética, In the Absence ov Light voltou à carga, já Orion espumava sangue (falso, claro) da boca e O Father O Satan O Sun! encerrou a primeira parte do concerto com todos os membros encobertos pela penumbra com máscaras demoníacas colocadas.

A partir daí, foi um desfilar de clássicos, recentes e antigos, que levou a turba que ocupava o Garage à loucura. Ao espezinhar do pedal-duplo e riffs igualmente esmagadores de Ov Fire And The Void, seguiu-se Conquer All com a força de mil exércitos sanguinários. Contudo, o momento mais especial da noite dar-se-ia com Pure Evil and Hate, canção retirada do baú da fase em que o conjunto ainda lançava material com florestas na capa e fonte em Old English Text, puro Black Metal com bafo a gasolina alá Venom que demonstra uns Behemoth de pazes com o passado. At the Left Hand ov God (o lado que interessa, como os Entombed tão bem demonstraram) voltou ao Death Metal embrutalhado que o conjunto aperfeiçoou ao longo dos anos e Slaves Shall Serve foi o turbilhão do costume. O final, esse, foi assegurado por Chant For Eschaton 2000, canção que falhou miseravelmente na sua tentativa de clamar o fim do mundo na viragem do milénio, mas que serviu na perfeição para esgotar os últimos cartuchos de uma noite intensa.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Daniel Jesus
Promotor – Prime Artists