Festivais Indie Music Fest

“Já Estou Farto!” de Paulo Antunes, ou a História do Punk com João Pedro Almendra no IndieLisboa’21

O Cinema S. Jorge recebeu a primeira sessão do documentário de Paulo Antunes, secção do IndieMusic, no final da tarde da passada 6ª feira. A Sala Manoel de Oliveira concentrou um vasto número de artistas e músicos da cena punk rock de Lisboa dos anos 1980 e revivemos momentos que nos marcaram a adolescência.

Este é o segundo documentário de Paulo Antunes sobre o surgimento do movimento punk em Lisboa, e a sua história contada por figuras marcantes do punk português, como João Ribas dos Censurados Um Punk chamado Ribas em 2019 e Já Estou Farto! em 2021 com João Pedro Almendra (Peste & Sida, Kú de Judas, PunkSinatra e, mais recentemente, Os Filhos de Hannibal Lecter).

Já Estou Farto! é um filme sobre uma figura icónica da música punk portuguesa, Almendra (autista para os amigos!), mas acima de tudo sobre uma sociedade saída da névoa da censura e do desconhecido. “Que seja um filme de todos, para o Rock!”, afirmou João Almendra minutos antes da sua exibição, acompanhado pelo realizador e pela produtora Iolanda Batista (Associação Waves of Youth). Agradecimentos especiais à Junta de Freguesia de Alvalade pela produção executiva e ainda ao Pepe, Joana, Francisco e David. Houve ainda espaço para um apelo sentido do protagonista ao consumo físico da cultura, através do apoio ao cinema e à compra de livros, por exemplo, pois “o digital não substitui o físico”.

A narrativa segue uma linha cronológica retratada com imagens de uma Lisboa conservadora, marcadamente sofrida pelos atrasos sociais e culturais deixados pela ditadura. Um processo doloroso também para Almendra e os seus 3 irmãos, que viveram muito de perto os processos traumáticos do pós-guerra do ultramar através do seu pai. O espírito do 25 de Abril estava muito presente nas manifestações culturais da época, e o Liceu Padre António Vieira foi um laboratório vivo dessa libertação onde a música e o teatro deram espaço à criatividade artística, e Almendra bebeu essa criatividade tornando-se um performer exímio, um verdadeiro “animal de palco”. O punk rock começava então a encontrar uma maneira muito “própria de se expressar no pós 25 de Abril”.

O bairro de Alvalade, apesar de ser uma zona onde maioritariamente residiam famílias de uma classe média conservadora, despoletou o rastilho revolucionário e concentrou de uma forma expressiva o movimento punk na cidade de Lisboa. O arrojo e a provocação estética cedo acompanharam João Almendra, como uma crista laranja no cabelo ou um Sobretudo oversized, que chamavam a atenção dos vizinhos (testemunho de Samuel Palitos) e inquietavam Mª Eduarda Andrade (sua mãe). Mas foram todas estas rupturas sociais e estéticas que o punk trouxe a uma sociedade que muito lentamente se abriria a uma nova linguagem cultural.

António Sérgio terá sido, para a grande maioria de nós, o grande mentor da música rock (e não só) em Portugal. E também o foi para Almendra que o marcou profundamente. Os Kú de Judas dão o pontapé de saída seguindo-se os anos d’ouro do punk rock português. Almendra junta-se então a San Payo e Varatojo e entra para os Peste & Sida em 1986 e o álbum “Veneno” é editado em 1987. As salas de concertos eram escassas em Lisboa, como o Bar das Palmeiras (sede do PSR na Rua da Palma) e o saudoso Rock Rendez-Vous onde algumas bandas eram criadas com a finalidade de aí tocarem. As expressões criativas manifestavam-se em tudo, nas letras, nos materiais de divulgação, nos figurinos. Os blusões de napa comprados na loja Porfíríos e roçados no alcatrão para parecerem velhos, as folhas de papel de alumínio para dar cor aos cabelos, os flyers e os cartazes trabalhados manualmente com processo de colagem e com um grafismo único. As divertidas Cotonetes (Iolanda Batista e Suzy Peterson) entram para os coros dos Peste & Sida no álbum “Portem-se bem” e Suzy cria os figurinos das míticas freiras.

O desconhecimento das verdadeiras consequências dos consumos, nomeadamente do de estupefacientes (vulgo drogas) era notório nesta época. A comunicação institucional não era assertiva e muitos artistas não se conseguiram libertar a tempo. Em 1989 João Almendra sai dos Peste & Sida e vai viver para Inglaterra durante dois anos. Ainda regressa aos Peste & Sida mas em 2010 forma a banda PunkSinatra onde o punk é mais rock, e em 2015 aceita o desafio de Jorge Vadio e passa a cantar um rock mais pop com Os Filhos de Hannibal Lecter.

Os testemunhos ao longo do documentário, sejam de músicos, produtores, agentes, amigos, técnicos de som, familiares, radialistas, são todos unânimes quanto ao talento e energia singular de João Almendra. Um artista que dá tudo em palco e na vida, uma raiva cheia de verdade e de emoção, um ser humano inteiro.

A destacar ainda a evolução técnica nos apontamentos gráficos, nas ligações de cenas, no tratamento de som e cor, e na própria fluidez da narrativa. Paulo Antunes está de parabéns!

Hoje teve lugar a segunda sessão na Culturgest às 18h45m, com Q&A com o realizador.