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Rumble In The Jungle, O (Amor) Combate do Século XXI

Em papel a premissa era, no mínimo, ambiciosa: juntar dois dos nomes mais sonantes da atual música portuguesa num único concerto, e foi dentro deste moldes que a Rumble In The Jungle, tournée conjunta entre The Legendary Tigerman e Linda Martini, surgiu. Depois de mais de uma mão cheia de concertos por todo o país, em salas de curta lotação, a despedida fez-se em grande no ringue de todos os confrontos: o Coliseu dos Recreios, uma das mais emblemáticas salas portuguesas.

Tal como a noite assim o exigia, o palco habitual do Coliseu fechou as cortinas de modo a dar espaço a uma arena, em formato de 360, construída em pleno centro da sala, relembrando a área de batalha entre jogadores de boxe. Apesar dos míticos confrontos da modalidade ecoarem pelas nossas cabeças, como a lendária noite em Las Vegas que opôs Mayweather e McGregor, já se sabia à partida que aquela seria uma noite apenas de vencedores.

Cabendo-lhe a tarefa de dar início ao primeiro assalto de uma noite que se adivinhava épica, Paulo Furtado e a sua trupe não perderam tempo em causar impacto, com um rock‘n’roll de vanguarda, repleto de sensualidade q.b. incapaz de deixar alguém indiferente. Com um recente disco de originais ainda na fresca, de nome Misfit, Paulo “The Legendary Tigerman” Furtado tanto mostrou os pontos altos do seu mais recente trabalho como algumas dos seus temas mais emblemáticos, com “Wild Beast” a não só dar início ao concerto, mas como também a soltar uma besta faminta por rock que tão acarinhada se tornou pelo público português.

Mesmo apresentando-se enquanto “tigre”, Paulo Furtado prefere operar como o lobo alfa de uma alcateia – de excelentes músicos, pois claro – que concilia o respeito e a admiração pelo seu líder, sem nunca se sentirem inferiorizados. A cumplicidade que liga Paulo Segadães (bateria), João Cabrita (saxofone) e Filipe Pisco (baixo) a Furtado é inegável, aliás, a forma como estes músicos conseguem ler os pensamentos uns dos outros só com o olhar chega mesmo a ser invejável, com este cenário a ser demonstrado no seu auge através do olhar fixo e inquebrável entre Furtado e Segadães ao longo de “Child of Lust”, assemelhando-se à leitura de pensamentos que dois lutadores de boxe exercem durante todo um combate.

Na noite que juntou dois pesos-pesados da música portuguesa, a matriz de combate que tanto foi promovida à volta do concerto rapidamente se foi desvanecendo ao longo da atuação de The Legendary Tigerman, trespassando a ideia que se estaria perante um encontro entre artistas do que propriamente um confronto direto; para celebrar a ocasião, Paulo Furtado vai convidando a concorrência para que possam dar o seu cunho pessoal no alinhamento da sua atuação, como foram os casos de “The Saddest Girl On Earth” (Cláudia Guerreiro), “These Boots Are Made For Walking” (Hélio Morais) ou “Black Hole” (André Henriques e Pedro Geraldes), mas foi com “Fix of Rock’n’Roll” em que todos os protagonistas da noite se juntaram no mesmo palco para demonstrar toda a sua grandiosidade.

Para o derradeiro assalto, The Legendary Tigerman desfere o golpe mais letal do seu assalto através de “21st Century Rock’n’Roll”, com os seus solos eletrizantes, notas de baixo, bateria galopante e saxofone imperial a assemelharem-se a autênticos ganchos e uppercuts letais, soltando-se uma besta avassaladora, de nome Paulo Furtado, cuja energia contagiante leva a que o seu corpo se torne num rio de suor no meio de todos os saltos e correrias que destila pelo palco, rugindo o título da canção de forma tão fugaz que rapidamente foi contagiando toda a sala em segui-lo, dando o concerto terminado de uma forma estrondosa.

 

Entre energias renovadas pelo público e uma arena (re)decorada, os Linda Martini acatavam a tarefa de dar continuidade a este “combate do rock” e, determinados em não permitir que o ardor da sala se esvaísse, atiram-se logo com “Panteão” e “Ratos”, dois dos temas mais sonantes de Turbo Lento, que tanto levam a uns quantos headbangings como ao canto em plenos pulmões dos fãs mais acérrimos do quarteto lisboeta.

Contrariamente ao que se sucedeu no ano passado em que (quase) lotaram o Coliseu dos Recreios – momento este que seria mencionado, mais tarde, ao som de “Putos Bons” – os Linda Martini apresentaram-se num palco circular dividido em quatro metades, com cada membro da banda a ficar de costas para uma diagonal da sala, o que logo aí levou a que a intensidade do público fosse menor quando em comparação com grande parte dos concertos com que o quarteto nos habituou. Todavia, esta decoração da sala levou a que o concerto tivesse o seu quê de especial, em que apreciação pela sonoridade rock alternativa dos Linda Martini passasse para primeiro plano em vez do campo de batalha habitual, decisão esta comprovada por alinhamento mais “pacífico” e que recaiu fortemente em Sirumba e o já mencionado Turbo Lento.

Na iminência do lançamento do quinto disco de originais, os Linda Martini aproveitaram a noite para revelar dois temas inéditos que irão figurar o próximo trabalho da banda, “Quase Que Se Fez Uma Casa” e “Boca de Sal”, com esta última a ter João Cabrita como convidado tanto em palco como em (futuro) formato físico. Tal como ocorrera com The Legendary Tigerman, também os Linda Martini foram convidando a equipa ‘adversária’ ao longo do seu round do combate, como aconteceu com Paulo Furtado em “Dez Tostões”, e mais tarde, para dar a noite como terminada, com a primeira antevisão do novo disco, “Gravidade”, aqui com todos os lutadores a envolverem-se num verdadeiro (amor) combate para elevar uma canção que só por si já era estrondosa para todo um outro nível, deixando-nos cada vez mais sedentos por ouvir o disco de uma ponta à outra.

Antes disso houve tempo para os clássicos de uma carreira repleta de carinho por parte do público português: “Belarmino Vs.”, “Unicórnio de Sta. Engrácia”, a inevitável “Cem Metros Sereia” e “Amor Combate”, com esta última a reunir coros uníssonos pela sala inteira, cimentaram o estatuto dos Linda Martini como uma das bandas portuguesas mais influentes a atuar no panorama musical da atualidade, conseguindo criar canções tão díspares mas que conseguem sempre manter um elevado nível de qualidade.

 

“Qualidade” seria sem dúvida uma das melhores palavras para descrever a noite de dia 21 de Dezembro. Opondo duas das mais carismáticas e polares facetas do rock’n’roll português, um contraste entre o caos e desordem, entre o aprumo e o decoro, o embate entre Linda Martini e The Legendary Tigerman foi, acima de tudo, uma celebração da música portuguesa, numa intensa batalha em que as três equipas a jogos emergiram todas como vitoriosas: Paulo Furtado e a sua trupe, Cláudia, André, Pedro e Hélio e, acima de todos eles, o público da noite.

 

Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Jorge Buco
Promotor – Metronomo