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Moonspell, Triunfo na desgraça

Prédios desfeitos em segundos, incêndios insaciáveis e a fúria impiedosa das águas – tudo isto castigou o povo temeroso a Deus que habitava Lisboa em 1755 e que se tinha dirigido às milhentas igrejas da capital no Dia de Todos-os-Santos para professar a sua fé. Volvidos 262 anos, a véspera desta fatídica data não foi de horror, mas de celebração, com a segunda noite de apresentação de 1755, o álbum que os Moonspell gravaram inteiramente em português, apresentado na íntegra. Sendo uma repetição, temer-se-ia que o impacto fosse suavizado, mas não, pois o carácter oportuno ainda adensou mais a atmosfera num Lisboa ao Vivo à pinha que, a juntar-se a uma imaculada prestação e ao facto da banda estar a tocar em casa, resultou num concerto a perdurar na memória.

No seu longo percurso, os Moonspell foram colecionando amores e ódios de estimação, seja pelas suas opções estilísticas ou pela postura por vezes inflexível, mas coerente. Todavia, não sendo consensuais, é irrefutável que são a maior banda de metal nacional de sempre e que dão concertos como poucos. Para além da óbvia tenacidade requerida para atingir o estatuto internacional que já atingiram a partir de um país como Portugal, aquilo que tem caracterizado esta longa caminhada é a coragem para experimentar, do Black Metal de raízes lusitanas ao gótico mais sensual. Contudo, fora os ocasionais interlúdios ou secções de músicas, a banda raramente arriscou cantar em português durante muito tempo. Isto, até escrever Em Nome do Medo, que rapidamente se notabilizou, não só por ser uma grande música em direito próprio, mas pela reacção que provocava ao vivo, pelo menos junto do público nacional. Digno é, que ao fim de 25 anos, o conjunto tenha finalmente composto um álbum inteiro na língua mãe, e que bem que soa ao vivo.

Foi justamente esse tema, numa versão orquestral soando do PA, que deu início àquilo que já se avizinhava ser um espetáculo com uma elevada componente cénica. Vultos equipados com hábitos pairavam sobre o palco, as Crystal Mountain Singers empunhavam chapéus típicos do século XVIII do alto dos seus púlpitos e a própria banda entrou vestida a rigor, com o próprio Fernando Ribeiro também encapuçado e com uma máscara da peste. De súbito, o som que ecoava foi rompido pela banda e pelos coros femininos apontados aos céus com o tema título. Assim nos apercebemos de imediato que, não só a ideia de cantar em português é mais do que bem-vinda, é essencial para tratar esta temática histórica. Não há melhor exemplo disso que no tema seguinte, In Tremor Dei, pois uma frase como “Lisboa, em chamas, caída, tremendo sem Deus” perderia todo o impacto se fosse traduzida, acrescentando-se ainda a participação de Paulo Bragança, subindo ao palco qual espectro agonizante, a emprestar o perfume do fado na sua forma mais sofrida para tornar esta canção num grande e arrepiante momento. Outro foi o 1 de Novembro, mais um caso que regista bem a expressividade de cantar na língua mater, com o vocalista alternar num registo mais gritado em desespero que vociferado com poder.

Ao vivo, os Moonspell apresentaram o álbum de forma irrepreensível, melhorando até uma das falhas que se sente por vezes em 1755. É que se em CD as orquestrações por vezes incham as músicas e retiram-lhes contundência, ao vivo a força do quinteto sobrepõe-se e atinge com o nervo requerido em temas como Desastre, Abalo ou Ruínas, que para além dum solo incrível, contou com chuva de confetti reminiscente a cinzas no ar. Fora certas ocasiões onde a guitarra de Ricardo Amorim ficou soterrada sob a secção rítmica demolidora, o som esteve perfeito para representar estes temas de desespero, particularmente na conjugação entre o peso, os teclados trágicos de Pedro Paixão e o gravitas dos coros.

O aspecto de expiação presente na frase acima citada percorre todo o álbum e é explorado pelos Moonspell com grande efeito dramático – afinal de contas, como é que um Deus benevolente permitiria isto acontecer a uma das três cidades mais importantes da fé católica, onde havia tantas igrejas que o som dos sinos de tornava incessante durante o dia? Evento deixou isso bem claro, mas onde o lado musical e teatral melhor casaram foi mesmo com Todos os Santos, com Fernando Ribeiro a empunhar uma cruz com lazer vermelho apontado ao público, como que este público de pecadores apenas se possa regozijar de ter nascido na época certa. Outro momento de grande intensidade dramática foi a Lanterna dos Afogados, tema original dos Paralamas do Sucesso, cuja apropriação aqui roça a genialidade. Se a música no sentido original narrava a impotência das mulheres dos pescadores que os esperavam junto aos faróis, aqui é tomada literalmente no rescaldo do marmoto que engoliu a cidade e da procura por sobreviventes, decuplicando o seu carácter melancólico com aquele jeito gótico ainda bem presente na banda. Foi assim, com Fernando Ribeiro empunhando uma lanterna enquanto os outros quatro tocavam na penumbra que se encerrou a primeira parte do concerto.

Terminada a apresentação de 1755, seguiu-se um desfile de clássicos dos Moonspell, a começar pela muito aplaudida Everything Invaded, do já longínquo ano de 2003, e Night Eternal. No entanto, a banda também não esqueceu que a noite era de festa rija pela cidade, tendo optado por um alinhamento consoante com o Halloween: depois de Em Nome do Medo, agora tocada pela banda e com uma participação lunática de Rui Sidónio dos Bizarra Locomotiva vestido com um macacão branco, o quinteto puxou dos galões com Vampíria e Mephisto, de gelar o sangue que corria quente no Lisboa ao Vivo. Já na recta final, como não podia deixar de ser, Alma Mater e Full Moon Madness fecharam as contas duma noite que tanto foi concerto como performance teatral e, acima de todo, triunfo para os Moonspell.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Daniel Jesus