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Patti Smith, Aura de luz branca

Durante a sua longa carreira artística (40 anos), Patti Smith esteve em Portugal duas vezes, ambas em Lisboa. Este ano, num espaço de 4 meses, tivemos o privilégio de vê-la abrir e fechar o verão com três memoráveis actuações.

Nesta 2ª feira dia 21 de Setembro (despedida do Verão), esteve no Coliseu dos Recreios para comemorar os 40 anos do seu primeiro e memorável álbum – Horses. As portas abriam às 20h30m, e às 20h00 já as Portas de Santo Antão tinham uma fila considerável de pessoas. As três gerações estavam representadas, os 60’s, os 70’s e os 80’s. Pais com filhos, filhas com mães, avós com avôs. Figurinos quase de uma estreia de ópera, blazers claros em camisas azuis, t-shirts negras do Bob Dylan, cabelos espetados e correntes caídas. Músicos de rua, jornalistas, chefes de gabinete, gente normal. A “estrela azul” é mesmo assim, de todos os corações, de todas as inteligências, de todas as almas e credos.

Passava pouco mais das 21h30m quando começou um burburinho de ansiedade, num Coliseu praticamente cheio. Sabíamos o alinhamento do espectáculo (o álbum Horses na integra), mas não sabíamos muito bem que voltas a poetisa do Rock lhe iria dar. Quem foi ao Porto estava expectante, com algum receio de não ser surpreendido, os restantes ansiosos.

Palco simples sem aparatos de imagens ou de luzes, com uma única referência à banda – a bateria, com fundo preto e letras brancas onde se lia “Patti Smith Horses”. Quase a bater as 21h45m, entram os 4 cavaleiros e uma deusa de aura branca luminosa, todos traziam camisas brancas e coletes pretos. Sem apresentações o tema “Glória” saí de rompante nas cordas de Lenny Key e na voz (mais grave que nunca) de Patti Smith, e convida-nos a um regresso aos finais da década de 1970 e à cidade dos históricos do Rock n’ Roll, Nova Iorque.

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Termina como começa, “Jesus died for somebody’s sins (pausa) “but not mine”, onde as últimas três palavras são de uma dicção tranquilamente perfeita, quase com uma certeza de quem não tem nada a temer. Para respirar e agitar os corpos, segue “Redondo Beach”, numa qualidade de som digna de registo. Entre músicas Patti Smith colocou os óculos, abanou ligeiramente os seus cabelos brancos compridos e na suspensão delicada dos seus dedos surgiu uma folha com um poema, “Birdland”. Fomos projectados para o CBGB’s e para a Igreja de St. Marks, em Nova Iorque, 1975. A sala, a meia-luz, envolveu-nos na primeira descarga energética da noite com um grito de revolta: “(…) Take me up, I’m going up, I’ll go up there, Go up go up go up up up”. (agora percebo porque é que o público entrava em delírio frenético!). O primeiro contacto visual de Patti com os restantes músicos, foi no tema seguinte, “Free Money”, em que a guitarra de Lenny Key regista uns acordes que fazem lembrar Zepplin. No final do tema, e depois de pedir desculpa por ir beber a “água portuguesa Bio”, avisou que estava na altura de virar o disco e de tocar o lado B.

Estávamos a meio do concerto e a energia já electrizava o público, numa espécie de jura de amor entre “nós e ela” e ainda não imaginávamos o que aí vinha. Segue o primeiro tema do lado B do álbum, “Kimberley” um tema mais pop-rock onde, apesar de tudo, conseguimos respirar sem o nó na garganta.

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Ao longo da sua vida artística, Patti Smith fez questão de eternizar os seus mortos mais queridos, através de canções. Quando soube da morte de Jim Morrison escreve um poema em sua homenagem, “Break it up”. Na verdade o “Rei Lagarto” foi um pioneiro na poesia Rock n’Roll e para Pathi Smith este foi um dos poetas-cantores que ainda se identificava com a geração (poesia) beat. Enquanto o piano e as guitarras davam os acordes de “Break it up“, Patti Smith descreve Jim Morrison como “a marble angel like Miguel Angelo” e com as mãos em direcção ao céu diz “ fly away free, in your next free adventure!”. O público agradece mantendo-se em silêncio e explodindo numa ovação no final. É a liberdade de voarmos num pensamento livre, no acreditar dos nossos sonhos e segui-los sem medo, é esta a sua mensagem para o mundo. Este foi certamente dos momentos mais intensos da noite, a segunda descarga energética. Ainda sem recuperarmos o folego, Patti despe o casaco e segue com a poderosa “Land”. Acompanhada com os acordes da guitarra de Lenny Key, lembra-nos a nossa grandiosa cidade de Lisboa “with many steps, steps of centuries”. Nesta altura já estávamos numa comunhão espiritual, numa sintonia grandiosa de igual para igual. Passagem para Gloria quase no final, numa sequência de poesia-politica que entrou como espadas nos nossos corações, nesta altura uma boa parte da sala estava com um sorriso rasgado entre lágrimas que não conseguira conter. Ligação perfeita com a última música de Horses, “Elegie”, música que dedicou a Jimi Hendrix em 1975, e que agora vai acrescentando ao grupo dos J’s – Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, , Ramones (familia), Kurt Cobain, Amy Winehouse, Robert Mapplethorpe e Lou Reed. Como que a lembrar-nos que sempre serão eternizados através do seu legado artistico. O Horses terminara com o palco cheio de todos aqueles com quem se cruzou no Hotel Chelsea da Rua 23 de Nova Iorque e com todos os que a marcaram. Os músicos dão um abraço e agradecem ao público.

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Provavelmente tão extenuada emocionalmente como nós (público), retira-se deixando a banda em palco com Lenny Key a dominar o microfone com um medley de Velvet Underground, “Rock & Roll / Waiting for my man / White light/White heat”.

Um regresso sublime, quando nos partilha a sua visita à Casa Fernando Pessoa e se maravilhou com os escritores que encontrou na sua estante, Rimbaud, Oscar Wilde e Walt Whitman, os mesmos que ainda hoje lemos. De seguida fomos projectados para Gone Again com o tema “Beneath the Southern Cross” (álbum marcado pelo seu ressurgimento em 1996). E sem esperarmos, introduz-nos “Because the night” com a sua história romântica com Fred ‘Sonic Smith, seu marido e pai dos seus dois filhos. “Because the night belongs to lovers”, um namoro que se repete cada vez que canta esta música, diz-nos a sorrir. Já em contagem decrescente, a escolha arrebatadora de “People have the power”, canção que marcou os showmicios dos Democratas norte-americanos. Relembrando-nos que as escolhas são de cada um e não das empresas nem dos governos (“fucking governments”).

Encore perfeito com “My Generation” (tema dos The Who de 1965), não fosse a diversidade etária na sala uma evidência. As três gerações cantaram e dançaram ao som dos energéticos acordes da guitarra de Patti Smith e da frase “Talkin’ ‘bout My Generation”. Orgulhosa de ver muitos que ainda nem tinham nascido quando gravou Horses, rebenta todas as cordas da guitarra enquanto diz que “esta é a arma da minha geração”. “Vocês são o futuro, e o futuro é agora”!

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Provavelmente ninguém saiu indiferente daquela sala, ninguém foi indiferente aquele ser humano gigante que esteve quase duas horas a tocar em cada um de nós, e a elevar-nos a uma dimensão de massa energética universal. Não nos esqueçamos das suas palavras, da sua entrega, da sua energia, da sua verdade. Sejamos “nós”, sejamos inteiros. Obrigada Patti Smith, por tudo!

Texto – Carla Sancho
Fotografia – Everything is New