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Tony Conrad, o filme e o concerto

Captação exaustiva dos sons de uma rua secundária de Nova Yorque, onde Tony Conrad segura um conjunto de microfones em círculo, e direcciona o olhar para o primeiro apartamento onde viveu e onde nasceram os Velvet Underground. Um último andar sem conforto, pelo qual pagava uma renda baixa e onde conseguiu reduzi-la dividindo-a com companheiros de casa. Os gastos nas necessidades básicas, como a alimentação, eram muito contidos nessa época. Um kg de corações de frango talvez fosse do mais barato que o talho vendia, e isso bastava-lhe, não fosse a sua formação académica de base os cálculos das equações Matemáticas (Universidade de Harvard, 1962). Mas apesar de não ter dado continuidade às ciências exactas, o raciocínio matemático foi estrutural na forma como decompôs milimetricamente os sons minimalistas das suas anti composições musicais. Conrad aguentou durante algum tempo empregos enfadonhos e desinteressantes em regime de part-time, que eram financeiramente suficientes para viver. “Aguentas um, dois meses a abrir envelopes, não aguentas muito mais que isso!”, diz a sorrir para a câmara de Tyler Hubby.

Sound by South West, 2006. Tony Conrad surge em palco mergulhado nos acordes revoltosos do violino. Uma performance surpreendente, em que numa ininterrupta explosão sonora deixa a jovens gerações a acreditar que aquele é o som do futuro. “O som de Tony Conrad deixa-nos o metabolismo a afundar”, comenta o músico Moby. Jonh Cale, uma das personagens principais neste documentário, testemunhou a viagem criativa de Tony Conrad praticamente desde o primeiro momento. Juntamente com o compositor La Monte Young, criaram sonoridades experimentalistas onde a liberdade criativa se sobreponha às regras convencionais da composição. Os The Primitives foram uma espécie de subterfúgio musical tridimensional. Narrativa sonora composta por fragmentações temporais de ritmos orgânicos, onde os instrumentos musicais eram levados ao limite da sua funcionalidade electrónica. Foram os percursores dos Velvet Underground, banda onde Tony Conrad não ficou muito tempo, “tinha mais que fazer”, diz para a câmara. Tudo o que Conrad mais queria fazer na sua vida era quebrar os convencionalismos, as regras, a disciplina claustrofóbica das indústrias culturais. As gravações inéditas com Le Monte Young e Jonh Cale foram mais tarde o motivo de desentendimentos de direitos autorais. Le Monte Young queria todos os direitos de autor das “composições” dessa época. Exigência completamente patética, aos olhos de Conrad, pois todas estas criações são a antítese da composição, são a não-composição, o não-profissionalismo. “Philip Glass, Le Monte Young e Steve Reich são compositores, eu quero livrar-me disso!”, afirma Conrad num sorriso libertador.

Liberdade que exerce também noutras expressões artísticas, como o cinema e o audiovisual. Em 1966 estreia nas salas de cinema nova-iorquinas, “The Flicker”. Uma película construída das vísceras da linguagem do cinema experimental, com justaposições de pontos a preto e branco (quadros, riscas) em diálogos sonoros com focos intensos de luz branca. O filme foi pouco apreciado pela crítica e gerou reações controversas na assistência. Uns sofreram ataques de pânico e vómitos, outros viram comboios e paisagens tranquilas. “A crítica detestou? Excelente, era mesmo esse o objectivo!”comenta Conrad. “ O casamento com a actriz mais cobiçada de Nova York, a bela Beverly Grant, estimulou a sua criatividade artística no cinema minimalista e, os dois, realizaram “Yellow movie”. Um filme onde Tony Conrad queria filmar o “tempo do envelhecimento, um filme que durasse 50 anos.”, dizia.

Regresso a 1962. De uma igreja imponente de Nova Yorque saiam sons minimalistas a anunciar as horas das missas e das da cronologia do tempo. E foi num desses dias de 1962 que Conrad teve que conhecer Charlie, o “quasimodo” da cidade, que manejava o carrilhão com uma perícia minimal. Regressou a essa igreja para uma performance com o violino em 2015.

“Fast Forward” lemos no ecrã. Tony Conrad segue num comboio com destino a Buffalo, onde foi professor de multimédia (audiovisuais) e, mais uma vez, rompeu com os métodos convencionais e autoritários do sistema político. Fruto da sua conduta anti autoritarismo, transformou a sala de aula num espaço de liberdade de pensamento crítico, criativo e visionário. Foi o primeiro professor a dar as suas aulas com o sistema de transmissão skype, triplicando deste modo a audiência e permitindo uma participação democrática a todos os alunos. Nos anos 1990 teve um programa de televisão, em que os transeuntes eram os protagonistas de cada episódio, passava-lhes o micro para a mão e dava-lhes liberdade total para falarem do que quisessem, incrementando assim a democratização da fama. Protagonista das preocupações sociais e do acesso igualitário do ensino, Conrad realizou um outro programa que se chamava “Linha de apoio aos trabalhos de casa”. Um programa interativo, em que os pequenos estudantes telefonavam e colocavam as suas dúvidas e Conrad, descontraído e afável, esclarecia-os.

A câmara de Tyler Hubby vai percorrendo testemunhos e intercalando com filmagens do passado recente e do longínquo. Para além das gravações de arquivo, Tyler Hubby e Paul Williams (um dos produtores que esteve no final da exibição do filme) acompanham Conrad ao longo de 22 anos, o que faz deste documentário um filme incrivelmente envolvente. “Rebobinar. Stop. Gravar”, segue para 1993 e para o renascimento do disco “Outside The Dream Sindycate”. Passados quase três décadas, Conrad é finalmente reconhecido como o “pai” do minimalismo inicial (“Early Minimalism”) e a sua música é dada a conhecer ao mundo. “O caos pode ser muito informativo”, diz Moby em relação ao álbum. A partir desta altura, Tony Conrad editada mais trabalhos, é convidado para actuações e as suas performances tornam-se deusas do minimal. O projecto cinematográfico “Mulheres na Prisão” (na realidade eram todos actores vestidos de mulher) onde pagou a renda do estúdio (a prisão) durante décadas, foi inicialmente gravado em pelicula de 16mm. A juntar à falta de orçamento para continuar as gravações e o suicídio de um dos actores, Mike Kelly, foram motivos decisivos para o abandono parcial deste projecto. Regressa ao estúdio e aos mesmos actores, fechando um ciclo artístico da sua vida (2013).

Um olhar angustiado sobre o majestoso Metropolitan Museum of Art, em que de mãos nos bolsos caminha em círculos enquanto diz: “Não consigo estar mais tempo aqui, é demasiado deprimente.”

Última cena do filme, o regresso às gravações dos barulhos urbanos. Tony Conrad no meio de uma estrada movimentada de Nova York, pede a Tyler para apanhar os sons de tudo o que passava. Com aquele modo tranquilo e delicioso, vai dizendo “olha, vem ai um camião, lindo! Uma mota, não não pedi uma mota! A bicicleta não faz barulho, não interessa. Crianças sim façam mais barulho!”

Mais do que um documentário, uma história de uma lenda do “early minimalism” nas várias expressões artísticas, Tony Conrad é um artista “completamente no presente”. Morreu com 76 anos em Abril de 2015.

“Tony Conrad: Completly in The Present” foi o filme premiado da secção IndieMusic, na 14ª edição do IndieLisboa 2017.

O concerto

À semelhança do que aconteceu um pouco por todo o mundo, também em Lisboa músicos portugueses tocaram um dos álbuns de Tony Conrad, depois da exibição do filme no IndieLisboa 2017. Não foi no palco do terraço do Capitólio, mas no palco da Casa Independente.

A produção ficou a cargo da produtora Nariz Entupido, que fez uma escolha de excelência dos músicos: João Paulo Daniel (percussão), Tiago Castro (guitarra), Diana Combo (bateria), Helena Espvall (violoncelo) e Pedro Chau (baixo). A interpretação de “Outside the Dream Syndicate” por este quinteto foi qualquer coisa de arrepiante. Durante quase uma hora ininterrupta, os músicos conectaram-nos numa transcendência hipnótica. As anti-composições de Conrad são músicas densas, longas, com acordes repetitivos que levam à supremacia do agudo! Esta interpretação foi verdadeiramente incrível, dada a complexidade rítmica que leva à exaustão física dos músicos. Tudo nos músicos reflectiu o minimalismo de Conrad. Todos eles mergulhados no próprio instrumento, como se estivessem num solo profundo. A silhueta da violoncelista Helena Espvall projectada nas imagens do “The Flicker” no ecrã, e os seus longos caracóis a cobrirem totalmente o rosto, foram de um surrealismo hipnótico estonteante.

Este concerto foi de uma singularidade sem precedentes, único. Dos melhores momentos de música a que tive a felicidade de assistir. Ainda bem que foi gravado e, quem sabe, um dia será editado.

Texto – Carla Sancho
Fotografia – Joana Linda | IndieLisboa
Promotor – IndieLisboa 2017