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Moita Metal Fest – dia 2: Sodom(a) no Palco, Gomorra na audiência

O título parece exagero, mas foi mesmo assim, semelhante a um episódio diretamente retirado desse livrinho de horrores que é a Bíblia. Ditava a profecia que a uma espera de dez anos se seguiria uma torrente de devastação, proporcionada por, não quatro, mas sim três, cavaleiros do apocalipse… de sotaque alemão. O segundo dia do Moita Metal Fest foi como que um lento crescendo que culminou no concerto gigante dos Sodom, que praticamente eclipsou as outras valorosas prestações do dia. No entanto, seria injusto não mencionar nesta entrada que, do metal em tons de sépia dos Heavenwood ao Hardcore centro-europeu dos No Turning Back, todo o certame de sábado se pautou pela variedade e, acima de tudo, pela positiva.

Não vale a pena estender a lengalenga introdutória, quem leu a peça anterior já sabe que o festival não sofreu nem um bocadinho com a mudança de local. No entanto, diga-se que, mais do que na primeira noite, foi neste segundo dia que ficou bem patente como o Moita continua a manter o mesmo espírito. As duas primeiras bandas que vivemos são exemplo disso mesmo, propostas tão antagónicas quanto possível sem, contudo, parecerem ambas deslocadas no cartaz. As simples mas gingonas progressões de Fast Eddie Nelson deram lugar ao turbilhão atonal e de alta técnica dos Analepsy sem o mais ligeiro arquear do sobrolho. Ambos os casos foram apostas de sucesso: o barreirense, com a companhia especial de Rui Guerra (dos The Quartet of Woah!) nas teclas, foi igual a si mesmo no misto de técnica e feeling com que aborda a sua guitarra (e aquela slide guitar… nunca esquecer); já a banda lisboeta, com o recentemente lançado Atrocities From Beyond, continua a justificar o burburinho à sua volta com mais uma prestação virtuosa de Death Metal a casar o brutal com a técnica.

O que se seguiu foi aquilo que se pode considerar uma rima cruzada: duas bandas de Heavy Metal intercaladas com duas praticantes daquela estirpe moderna pós-Pantera com Groove e nervo Thrash em partes iguais. Comecemos pelo tradicional, que é sempre bom. Os Attick Demons e os Midnight Priest são duas bandas que nos trazem inevitavelmente à memória os Iron Maiden, mas por razões diferentes. Os primeiros devem mais ao Power Metal musculado e sem pendericalhos do que aos ingleses, mas a voz de Artur Almeida (ele que nos desculpe, já deve estar farto de levar com isto) é inquietantemente semelhante à de Bruce Dickinson. Os segundos já tiveram uma inspiração mais decalcada nas suas malhas (agora mais próximas de um Speed Metal à amerciana), mas continuam a dever muito ao arquétipo da cavalgada maidenesca. Os dois conjuntos deram concertos eletrizantes: os Attick Demons a assentar sobre o poder de temas como Let’s Raise Hell e Back in Time, os Midnight Priest a mostrar como nem a desinspirada mudança para a língua inglesa beliscou a capacidade de escrever temas orelhudos como Hellbreaker e Into the Nightmare (mas, convenhamos, são músicas como Rainha da Magia Negra e À Boleia com o Diabo que continuam a puxar pela cantoria em uníssono).

Quanto às outras duas bandas, os Primal Attack e os Revolution Within, já se sabe o que a casa gasta, para o bem e para o mal. Numa reportagem a um Moita há uns anos atrás (para outro meio, cough cough), referi que Pica dissera que a bitola não falhava no festival e, mencionei eu, que tal se estendia à banda. Pouco mudou, já que, com este novo Heartless Opressor, os Primal Attack continuam a disparar bojardos de afinação sísmica com gosto, como The Prodigal One e Red Silence, a juntar-se ao arsenal já significativo que o anterior Humans proporciona ao vivo. Escusado será dizer que, sendo uma tradição moitense, o mosh não cessou durante este concerto, nem no dos Revolution Within, que elevam o corrupio humano a uma arte. A banda de Santa Maria da Feira não tem pretensões a mudar o panorama musical, o que lhes interessa castanhada para partir pescoço e meter a maralha a mexer. É o que fazem sempre sem falhas, e. como em 2013, não faltou Wall of Death (desta vez com Pure Hate como pano de fundo) nem a obrigatória participação de Hugo Andrade em Pull the Trigger.

O Moita Metal Fest é um festival aberto e que costuma ter representantes de todos os géneros musicais, mas o Black Metal sempre esteve em falta por estes pastos. Para colmatar essa falha, a organização acabou por convidar, quiçá, a melhor banda do género em Portugal. Os Corpus Christii não desperdiçaram a oportunidade de empunhar orgulhosamente a infernal tocha de Satã e até trouxeram Vulturius (dos Decayed) para assumir uma segunda guitarra e assim dar uma dose extra de veneno e gelidez. O resultado foi um dos melhores da noite: Nocturnus Horrendus a vocalizar bílis e ódio, apoiado por uma entidade dedicada a vergastar os verdadeiros que não foram perder tempo em actividades terrenas, como ver a bola, com a mais fina casta de Black Metal nacional. Começando por incidir principalmente nos temas de PaleMoon (Night of Flaming Hatred e Underbeast Craft), os Corpus Christii foram andando para trás no alinhamento até chegarem aos seus primórdios em Ave Dominii. O final foi assegurado, como é costume, ao hino do mal que é All Hail… (Master Satan).

Ao contrário do que vem sendo costume, o Moita deste ano não esteve particularmente concorrido nas lides do hardcore. Isso talvez possa ser explicado como um guardar de trunfos para o “main event” que foram os No Turning Back (e eles, que até entram em palco anunciados por um MC, como no boxe). Por um lado, ter uma banda do calibre dos holandeses é sempre outra coisa, mas por outro, a ausência de outras propostas do mesmo género e a familiaridade com os NTB (que já devem ter casa deste lado do rio dadas as vezes que por aqui passam) fez com que o pelotão do 2Step estivesse mais tímido e em menor número este ano (a tentativa honesta, mas infrutífera, de fazer um circlepit tão grande que circundasse os pilares da tenda é resultado disso). Não obstante, a celebrar 20 anos de carreira, de canções, de cansaço partilhado, de um modo de vida sem cedências, o grupo voltou a dar um concerto em que canções como Take Your Guilt, Stand and Fight e Stronger foram cantadas a plenos pulmões pelos seus indefectíveis fãs.

A noite já corria largos passos para o apocalipse que a chegada dos Sodom trouxe, pelo que fez todo sentido sermos engolidos pela melancolia de um fim anunciado. Os Heavenwood trouxeram-na consigo para a Moita, ao contrário do vocalista Ernesto Guerra, que, dada a indisponibilidade por motivos profissionais, não tem tocado com a banda. Em seu lugar esteve Miguel Inglês, dos Equaleft, cujo registo berrado mais agressivo assentou bem com a voz mais emocional de Ricardo Dias, se bem que esta nova combinação não pôde ser bem apreciada de início dado o estado embrulhado do som. Desde que voltaram com o Redemption de 2008 que os senhores de Gaia têm estado em alta e a sua longevidade e popularidade nota-se bem pela quantidade de fãs que sabiam as letras de cor. Grande parte do set esteve focado no The Tarot of the Bohemians e foi alvo de recepção calorosa, mas foi nos saudosos regressos a Rain of July, Emotional Wound e na recta final de Frithiof’s Saga e Suicidal Letters que os maiores e mais efusivos festejos se sentiram perante os “nossos” Paradise Lost.

Não é sempre verdade que o melhor seja guardado para o fim (basta lembrarmo-nos do fundo dum barril de cerveja, ou da vida em geral), mas há motivos para que esse adágio se tenha popularizado e este é um deles. Que nos desculpem os fãs acérrimos de Destruction, Tankard e de praticamente quase todas as bandas do género situadas deste lado do Atlântico, mas os Sodom, a par dos Kreator, são a melhor banda de Thrash europeia de sempre. Dez anos se passaram desde que Tom Angelripper e Bernemann cá meteram os pés e foi tempo de mais, pelo que este repórter deixa desde já um encarecido agradecimento ao Moita por ter quebrado o hiato.

Eis um pensamento provocante: os Sodom não sabem dar maus concertos. Esta sentença não é formulada com conhecimento de causa, pois quem a profere nunca tinha visto a banda de Gelsenkirchen ao vivo. É antes uma proposição lógica: quem escreve temas como Outbreak of Evil ou Agent Orange está fisicamente constrangido a tocá-las sempre com o máximo de pujança e acutilância possíveis (por alguma razão o logo dos Sodom é como é). Especulações à parte, foi mesmo isso o que aconteceu, com uma relação perfeita de temas recentes e clássicos malditos a intercalarem-se. A banda vive uma boa fase, os seus álbuns mais recentes respeitam bem o seu legado e demonstram uns Sodom ainda viçosos e viciosos, e esse estado de coisas positivo reflecte-se em palco. A aparente bonomia de Angelripper a enaltecer as virtudes do público português foi entrecortada com malhas de Thrash teutónico punitivo, desde obuses mais recentes como Sacred Warpath ou City of God, até aos primórdios selváticos de Blasphemer e Sodomy and Lust.

O espírito estava em altas, com o circlepit numa intensidade com os ponteiros no vermelho e os presentes tresloucados (exemplo disso foi o sujeito que subiu ao palco, mostrou o rabo, deu um beijo na testa de Bernemann e atirou-se sem ver quem o agarrava). A recta final do concerto foi um autêntico recital de brutalidade com Nuclear Winter (assustadoramente mais actual), a motorheadiana Ausgebombt e o requiem que é Remember the Fallen a encerrar mais um Moita Metal Fest de elevadíssimo padrão. Teria sido o momento mais alto da noite, não tivesse o trio tocado Tired and Red de surpresa. Sendo a música favorita dos Sodom para quem escreve estas linhas, a resposta só podia ter sido uma: insanidade temporária. Quando uma banda causa uma reacção destas, já se sabe que a noite foi boa.

Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Marta Louro | WAV Magazine
Evento – Moita Metal Fest’17