Backstage

Sobre estar lá e não estar, uma conversa com os Ditch Days

“Ditch days” são, à falta de uma tradução directa, dias de gazeta, de descompressão, de ficar somente a existir. A expressão assume aqui uma ambivalência: se por um lado serve de inspirada denominação para a jovem banda lisboeta que nos tem embalado ao som do seu Indie Rock orelhudo e solarengo, por outro contrasta exactamente com a ética com que estes rapazes se têm lançado à estrada para promover Liquid Springs, o seu primeiro álbum. A próxima paragem é o concerto marcado no dia 10 de Março para tocarem ao lado de Maze e dos Throes + The Shine no palco do Musicbox no Talkfest.

Foi num destes dias de relaxamento, entre datas da tour de Inverno, que os apanhámos num pub do Cais do Sodré. José Crespo (teclas e voz), Guilherme Correia (guitarra e voz), Luís Medeiros (baixo e voz) e Rafael Traquino (bateria e voz) deram-nos conversa que nunca mais acabava e que infelizmente não coube toda nestas linhas. Grupo de amigos há uma data de anos, os Ditch Days contaram-nos sobre os primórdios da banda, a (re)entrada tardia de Rafael, os desejos de fugir à monotonia do quotidiano, a viragem de 180º que as suas canções tomaram, o enamoramento com a sétima arte e, sim, até planos para se envolverem nas autárquicas.

Música em DX (MDX) – Última vez que vos vimos foi há 4 meses, no concerto de lançamento de Liquid Springs no Sabotage. Desde então, como é estes últimos tempos vos trataram? Que balanço fazem?

Rafael Traquino (Rafa) – Essa noite foi uma loucura, nem te conto. Depois do Sabotage acabámos, a banda não estava a funcionar…

(risos)

Guilherme Correia (Gui) – Falando a sério, o mais imediato depois desse concerto do Sabotage foi a primeira fase da tour do disco, que começou logo no dia a seguir em Guimarães, num concerto que correu tão bem que não existiu. Choveu muito e era ao ar livre, por isso fomos lá fazer turismo. Curiosamente, foi um bom presságio para o resto da tour, porque foi turismo o que andámos a fazer acima de tudo, tivemos a oportunidade de tocar em muitos sítios que onde não tínhamos ido para imensas pessoas que não conhecíamos.

José Crespo (Crespo) – E o pessoal nos sítios onde íamos tocar conhecia os singles, algo que não estávamos à espera.

Gui – Sim, a recepção foi boa. Tanto que aquele momento no Sabotage, em que repetimos a Melbourne para ver se o pessoal a cantava, fizemo-lo também em Aveiro, onde tivemos muito mais gente do que estávamos à espera. Até foi, se calhar, dessa primeira fase, o maior concerto fora de Lisboa. Digo primeira fase porque começámos agora a segunda.

 

 

MDX – Vocês neste momento até estão a descansar da segunda parte da tour e isso traz-nos a uma questão engraçada. Como é que Ditch Days é recebido no Inverno, sendo uma banda que puxa pelo sentimento veranil?

Gui – É de bikini, com bóias…

Rafa – Pá, é com bons técnicos de som,  boas vibes e com um público tranquilo. Até estivemos em sítios onde havia malta que achávamos que era super casual e que tinham entrado ali sem querer, mas no fim vieram falar connosco tipo “ah sim, sim, já estive a ouvir umas cenas, vim ver, gostei…”

Crespo – O nosso concerto na última quarta [1 de Fevereiro] foi em Santa Maria da Feira. Quando acabámos, um pai e um filho vieram falar comigo, disseram que tinham vindo do Porto só para nos ver, apesar de estar um dia mesmo horrível.

Rafa – E era uma quarta-feira.

Gui – Em relação à tua pergunta quanto a seremos uma banda de Verão a tocar no Inverno, é giro ver que quem lá vai porque já nos conhece, sabe que nós somos uma banda mais “quentinha” e se calhar é interessante porque está a chover e está frio, mas lá dentro, durante uma hora, não vai estar. Tanto que, em muitos posts sobre os concertos, ou mesmo em reportagens que nos dedicaram, o ângulo acaba por ser tipo “a Primavera veio durante um bocado” ou assim.

Luís Medeiros (Luís) – As pessoas conseguem transportar-se no concerto e isso é fixe, porque é o que nós procuramos enquanto banda. Levá-las a elas e a nós para esse casulo.

 

MDX – Não vos estava a reduzir a uma mera banda de Verão, mas é engraçado isso que referiste, Luís, porque eu tenho ideia que, desde o próprio nome da banda até às próprias temáticas, vocês giram muito à volta do escapismo e da fuga à monotonia. É uma abordagem consciente ou sai-vos naturalmente quando começam a escrever?

Crespo – Abordámos um bocadito, tanto que uma das músicas tem o nome de um livro do Calvin & Hobbes que, traduzido para português, significa “que dias tão plácidos” [The Days are Just Packed].

Gui – Isso é uma coisa um bocado natural em nós, procurarmos e fazermos coisas que vão a esse encontro. Penso que, no início, naquelas primeiras músicas, esse objectivo estava presente sem nós termos bem consciência dele, mas rapidamente e logo que começámos a pensar num conceito mais próprio para o que estávamos a fazer, chegámos a esse universo e desenvolvemo-lo.

Luis – Estou aqui a pensar que as nossas músicas são feitas muito com esse escapismo para essa zona de Verão, de despreocupações, de Sol, e mesmo as que não são, as que têm um aspecto mais nostálgico e tudo mais, são músicas que falam em não estar aí. São feitas em contraposição.

Rafa – É o estar aí e não estar aí.

Crespo – In Films é “o Verão do nosso descontentamento”.

Luís – Tal e qual, é sobre estares triste porque não estás na situação em que algumas das outras músicas te colocam.

MDX – Nota-se que o escapismo não passa só por um deslocamento espacial, mas temporal também. A Nostalgia e a Back in the City parecem procurar por algo que já passou.

 

Gui – Sim, muito sobre nostalgia, no fundo. É uma palavra um bocado chave para nós.

 

MDX – O conceito vai também de encontro ao nome do álbum, Liquid Springs. Que lugar é esse?

Luís – É um bocado aquilo que até foste explicando quando introduziste a pergunta. Quando começámos a criar o conceito musical da banda, reparámos que as nossas músicas giravam todas à volta do escapismo e de ir para outro sítio, procurar sítios imaginários, quiçá.

Gui – Nostalgia é aquele sentimento em que sentes falta de coisas que estão lá, mas não estão bem lá. Liquid Springs é aquele tipo de sítio que não existe, mas existe. Nesse aspecto de realidade versus imaginário, funciona no mesmo plano que a nostalgia, os sonhos… Os sonhos também estão lá, mas não estão! Liquid Springs é uma tradução muito concreta, porque é um sítio, dessas coisas todas.

 

MDX – Eu tendo a imaginar Liquid Springs, também enviesado pela maneira como interpreto a vossa música, como uma paisagem de lago, idílica, a tons de pastel, gravada em fita analógica. Tipo aqueles filmes coming of age.

Luís – É bué isso, mas bota azul-bebé aí para cima, estás a ver?

Rafa – As pessoas desse sítio têm uma vibe tipo Aldeia do Noddy. Não há mais nada para lá daquilo, tu percebes isso mas aceitas. Ficas “isto é claramente um sítio onde as metáforas se juntam todas para morrer”. (risos)

 

MDX – Já mencionaram isto noutras entrevistas, mas para quem nos estiver a ler e não souber, a vossa relação musical e até de amizade já se estende muito antes daquilo que se pode considerar o início de Ditch Days. Qual é o vosso mito de fundação?

Rafa – Eu posso falar de quem viu de fora, que é sempre uma perspectiva interessante. Nós tínhamos uma outra banda, os Élan, composta por nós os quatro e mais um quinto amigo e acabámos, pá, porque a vida aconteceu.

Crespo – Mas Ditch Days começou antes da outra banda acabar. Aliás, a Blue Chords foi um bocado a música de ruptura, porque eu cheguei ao sítio onde ensaiávamos, a casa do Luís, com os acordes. Eu mostrei e o pessoal ficou “é engraçado, mas não é muito a nossa cena”. Por outro lado, o Guilherme gostou muito e, portanto, ainda quando Élan existia, começámos logo a trabalhar nas músicas.

Gui – O engraçado de termos tocado juntos antes é que, mesmo sendo uma banda nova com músicas novas, são as mesmas pessoas. Eu e o Crespo pensámos “queremos baixo nisto, queremos tocar com pessoas”. Quisemos tocar com eles!

Rafa – Parte da razão pela qual Élan acabou foi porque nós vivíamos todos num período de “ditch days”, dias em que ninguém tem nada para fazer e a banda cresce nesse ambiente. Acabou por durar algum anos até, foi muito divertido, mas depois a faculdade acaba –  arranjar ou não trabalho, entrar em mestrado, não haver tempo para ensaiar – deixou de haver disponibilidade, acabou-se essa vida e a banda teve um fim super orgânico, continuámos todos amigos. Ocasionalmente tocávamos algumas coisas, umas jams quando havia tempo. Eu já estava fora do mundo da música, enveredei no mundo do trabalho, focadíssimo em ser infeliz, e estava a conhecer o projecto por fora. O Luís mora ao pé de mim, estávamos juntos quase todos os dias à noite e ele falava-me de que o Crespo e o Gui estavam com uns sons fixes, que se tinha juntado a eles e que tinham uma banda que eram os Ditch Days. A certa altura eles já estavam formados, a tocar em spots e a lançar música. Foi assim que lançaram o primeiro single

Luís – Sim, já tínhamos o álbum gravado.

Rafa – …e aconteceu um dia em que eu estava a meio do trabalho. o Luís liga-me a pedir um favor e que não seria uma tarefa fácil caso eu aceitasse. Eu perguntei o que era, isto numa terça-feira à tarde, e ele diz-me “nós temos um concerto na sexta, precisamos de baterista, não queres vir ensaiar connosco duas ou três vezes e tocar bateria nesse gig?” Isto sendo o primeiro concerto a sério. Nesse dia saí mais cedo, passaram-me os temas que tinham, ouvi tudo, fiquei mesmo orgulhoso das músicas ainda antes de tocarmos juntos, os ensaios correram bem e esse concerto também. É aí que começa a minha cena com Ditch Days.

Crespo – Fez imenso sentido. Nós tivemos três bateristas antes e quando começámos a tocar com o Rafa apercebemo-nos que ele era a pessoa mais indicada.

Gui – Foi, no fundo, o primeiro baterista a sério, até porque o álbum tem dois bateristas e um deles foi o produtor, o Miguel Vilhena, que tocou porque estava lá.

 

MDX – É bastante patente que o universo musical de Ditch Days está muito ligado ao cinema. Quanto desse mundo vos influencia?

Crespo – Ao início afectava muito, porque nem sequer tínhamos voz nas músicas. Era só samples – de filmes, séries, até mesmo entrevistas. E depois era muito um trabalho de cortar e colar.

Gui – No fundo, estávamos dependentes do que se dizia nos filmes para contar a história da nossa música.

Crespo – Eu sempre achei piada a isso. Pegas numa frase que faz sentido num certo contexto e colas com outra, passando a ganhar outro sentido que é só teu. Um exemplo muito específico: na Nostalgia, quando aparece aquele sample que diz “ditch days” a meio da música, entre o “ditch” e o “days” há cerca de 50 anos de diferença. O segundo é de um episódio de Twilight Zone e o primeiro é de uma entrevista do Russell Brand, aquele humorista inglês.

 

 

MDX – Esse amor cinéfilo está bastante patente nos vossos videoclips. Ao contrário de muitas outras bandas, que ora seguem conceitos abstractos ora limitam-se a gravar as suas actuações, vocês têm apresentado vídeos que seguem uma narrativa linear, como se de uma curta se tratasse, sendo o mais recente, para Zowee, exemplo disso. Porquê este formato?

Gui – Nós quisemos dar um elemento visual muito forte a Ditch Days, que estivesse patente na nossa música. Ou seja, a música já encaminha muito para essas paisagens, mas nós quisemos ter uma componente que desse um empurrão que ajudasse ainda mais a guiar quem ouve para esse universo. Tanto que nos nossos concertos temos aquelas projecções de filmes e de séries.

Luís – Há duas maneiras de ouvir Ditch Days: ou fechas os olhos e és transportado para o que a música está a dizer, ou tens os olhos abertos e vês imagens que assumem o mesmo objectivo.

Gui – Quisemos que isso estivesse demarcado em tudo o que nós fazemos. O videoclip, por ser o produto visual chave em qualquer banda, tinha de lá estar. A ideia de ter histórias e de introduzir personagens no universo Liquid Springs até partiu mais da produtora, a Harakiri, em reuniões para perceber o que íamos fazer no vídeo e achámos que fazia muito sentido termos essas narrativas. Porque isso leva mesmo muito ao cinema e, já que queremos ter essa ligação, então façamos pequenos filmes.

Rafa – Se foram histórias que fizeram estas músicas, agora é vez destas músicas criarem histórias.

Gui – Foi assim que nasceu na Blue Chords aquela cena entre os dois namorados que se conheceram quando um aconselhou Liquid Springs ao outro, e que acabam porque o namorado a quem foi apresentado esse local quer fugir para lá. O outro diz que não quer ir, que já tem tudo ali, que não entende como é que ele não está bem no sítio onde está. Isso até retrata um pouco a nossa cena.

Crespo – Há sempre uma procura por Liquid Springs, pelo sítio em si. Nós, até agora, sempre escolhemos, por opção própria, não mostrar Liquid Springs.

Gui – Para ser fruto da imaginação de cada ouvinte. Voltamos à questão de estar lá mas não estar.

Crespo – É como o espelho do Harry Potter, em que tu vez o que queres ver, o que mais desejas e que é diferente para todos.

Luís – Para fazer uma ligação mais directa com a própria banda, é como as vozes do Calvin & Hobbes, só funcionam porque tu é que as crias. Eu lembro-me de ver uma animação que alguém fez e aquilo bateu-me zero, apesar dos desenhos serem iguais. Depois percebi que aquelas não eram as vozes que eu tinha imaginado.

 

MDX – Tu já mencionaste antes, Crespo, de que estavas reticente em alterar esse formato que já tinham concebido para as músicas para um tipo mais clássico de canção. Não tendo essa informação à partida, parece que os temas foram logo escritos tendo em mira esse modelo mais ortodoxo. Até que ponto é que sentiram as canções escaparem do vosso controlo?

Luís – É fixe que digas isso…

Gui – Até porque o processo foi um bocado doloroso.

Luís – O que aconteceu foi que ensaiámos, ainda antes de ir para estúdio, nunca pensando no formato de canção.

Gui – Nem sequer tínhamos vocalista.

Luís – Eu entrei para tocar baixo, não para cantar. Depois, no estúdio, com os inputs do Miguel [Vilhena], é que começámos a compreender que havia ali potencial para canções.

Gui – Foi um grande empurrão do Miguel. Eu acho que ele nunca chegou a conceber aquelas músicas com samples, no sentido em que ele pensava que nós estávamos apenas a gravá-las e que quando chegássemos ao dia de ter vozes, eventualmente iríamos compor as melodias, escrever as letras e gravar as vozes. Nós, por outro lado, nunca pensámos assim.

Luís – É bom que digas que não se nota, é fixe para nós porque significa que todo o trabalho que tivemos, a adaptar as músicas que já tínhamos para voz, compensou.

Gui – Mais do que pensar em voz para cada música, nós pensámos “agora vamos ser uma banda com voz… como assim? Que tipo de voz é que vamos ter? Vai ser aguda, grave, gritada, sussurrada?” Todo esse processo teve de ser pensado e custou um bocado a conceber que músicas que já tínhamos há um ano iam ficar diferentes.

Crespo – Imagina-te estar à espera de um filho durante nove meses e depois é uma menina. Ok, afinal tens de dar nome de menina, roupa de menina, educá-la como uma menina.

Gui – Mas valeu a pena a mudança, se calhar abriu-nos portas que não teríamos se fôssemos uma banda mais conceptual e de nicho.

MDX – Fecharam a porta a experimentar coisas nesse sentido? 

Gui – Falando por todos, acho que vamos ser sempre uma banda de canções. O que não impede que, num álbum futuro, não tenhamos músicas só com samples, ou um pequeno  EP nessa direcção.

Luís – Até ficou como uma condição auto-imposta. Ficámos com a ideia de assumir a cena das canções mas com planos de, a certa altura, lançar alguma coisa no formato original.

Crespo – Acho que um dia, como projecto pessoal, ainda hei de lançar uma versão do álbum só com samples, como tinha imaginado.

 

MDX – Já começaram a compor material novo? Ou ainda estão focados em Liquid Springs?

Rafa – Eu comprei hoje um teclado midi, só para perceberes bem. Tens de meter esta parte a negrito.

(risos)

Crespo – Não só começámos a escrever mais músicas, como quando estávamos a gravar o álbum houve um processo de triagem. Nós temos mais sete músicas que não usámos.

Luís – Algumas não usámos por sentirmos que não estavam tão boas quanto outras, outras porque achámos que ainda podíamos trabalhá-las mais e lançar posteriormente. Também queremos ter mais participação do Rafa, ele não teve tanta neste último álbum.

Rafa – Não tive “tanta”.

(risos)

Luís – Pá, mas mesmo que não tenhas influenciado no processo de estúdio, já tocando tanto tempo ao vivo fez com que as músicas evoluíssem de uma forma em que já estás presente.

 

 

MDX – O facto de terem acumulado experiência ao vivo afecta o vosso processo de composição?

Gui – Eu acho que não.

Luís – Também não me parece. Quanto muito, conseguimos perceber melhor o que vamos fazer numa música em estúdio e o que vai ser preciso para traduzi-la ao vivo. Nós gostamos de um processo trabalhado, em que utilizamos todas as hipóteses que o estúdio nos dá. Ainda não experimentámos tudo, mas já temos perfeita noção do que resulta live.

Gui – Somos muito uma banda de estúdio. Se queremos fazer uma música, não vamos os quatro para a sala de ensaio tocar até sair alguma coisa. Visto de fora é super desinteressante, já que é estar sentado em frente ao computador a testar coisas. Numa garagem estás limitado aos instrumentos que tens à tua frente, em estúdio podes ir buscar sons sabe-se lá de onde.

Luís –  É bué interessante fazer, e também observar nos outros, o exercício de transportar cenas de estúdio para um formato live. Às vezes ficam mais despidas, noutras mais energéticas.

Rafa – Ao mesmo tempo… isto foi algo que me aconteceu, não sei se reflecte toda a banda, mas quando estás a tocar uma música ao vivo, tu estás a sentir da maneira mais crua possível a vibe da música que criaste e com a qual mantens uma certa distância, que é saudável, mas impede-te às vezes de compreender o seu potencial. Tu apercebes-te de momentos que ficariam melhores quando a tocas ao vivo. Isso transportas depois quando voltas para ensaio e ficas “pessoal, eu sei que tocávamos ‘assim’ antes dos concertos, mas eu comecei tocar desta forma e agora não sei tocar doutra maneira, porque é assim que fica mais fixe”.

Gui – Ninguém faz isto, porque há timings e não há dinheiro para usar e abusar de um estúdio, mas idealmente devia haver um loop de gravar a música em estúdio, ensaiar, tocar ao vivo, e voltar a gravar a música em estúdio.

Rafa – Fazer a música perfeita.

Gui – É como se a mandasses um bocado ao ar e visses como é que ela ia crescer.

Luís – Quais são as partes que colam.

Crespo – Eu sinto isso especificamente na parte das vozes. Por exemplo, o Rafa não estava connosco quando gravámos as vozes do álbum e hoje em dia socorremo-nos muito da voz dele.

Luís – O Rafa, como toda a gente sabe, tem um falsete…

Gui – Invejável.

Crespo – A palavra certa é angelical.

Rafa – Kate Bush. Wuthering Heights, é a minha influência. No Singstar tinha nota máxima.

Gui – Aliás, nós quando estamos a press-release da banda, pensamos em adjectivos que daríamos ao falsete do Rafa: onírico, delicioso, comestível, etéreo.

Rafa – Tivemos uma review ao álbum ao lado duma review ao álbum da Kate Bush! Na Timeout! Tivemos quatro estrelas e ela também, portanto, somos iguais a Kate Bush.

 

MDX – Voltando um pouco atrás. Pegando no que disseste no início, Gui, de visitar outras cidades e conhecer realidades ainda não experienciadas. Estar numa banda a tocar e em tour, isso acaba por satisfazer a vossa necessidade de escape.

Gui – A 100%.

Rafa – “Wanderlust”.

Luis – Até já referi noutras entrevistas que nós compusemos as músicas sempre a pensar no escape e até de sair para um sítio que não Portugal. Um sítio mais californiano, australiano ou até imaginário. Mas depois demos por nós, em tour, a conseguir inserir-nos no feeling que tínhamos criado.

Gui – Encontrámo-lo em sítios e acções onde não achámos que ele fosse estar.

Luís – Junta-se bem o facto de estarmos em roadtrip e depois irmos tocar as nossas músicas, que encaixam bem com esse sentimento de viagem.

Gui – Criámos músicas a pensar “que bom seria estar numa situação” e ironicamente, e felizmente, essas canções colocaram nos nessa situação. Tanto que eu hoje estou em depressão por estar em Lisboa sem fazer nada.

Rafa – No entanto, foi discutido entre nós que seria tudo muito mais tranquilo se os concertos fossem às quatro da tarde. O facto de darmos concerto sempre às dez, faz que estejas o dia inteiro nestes ambientes e nesta cavaqueira, mas tá toda a gente sempre um pouco nervosa.

Gui – Olha que agora discordo contigo.

Rafa – Pá, é que acontece bué estarmos num sítio bué fixe, achar tudo óptimo, mas eu estar nervoso.

 

MDX – Não desfrutas tanto quanto gostarias.

Rafa – Sim, é isso!

Gui – Por acaso para mim não. Eu sempre fui aquela pessoa sem grande paciência para férias, estar uma semana num sítio qualquer a anhar.

Luís – Tens mais paciência para escrever músicas sobre isso!

(risos)

Gui – De facto! Mas os concertos justificam um bocadinho as saídas, no sentido em que é trabalho e és recompensado, mas também estás de férias e estás a curtir.

Luís – Acho que aonde o Rafa queria chegar é: é tão fixe estar em tour que, às vezes, sentimos que até era mais fixe se pudéssemos aproveitar ainda mais o tempo nas cidades.

Rafa – Há um momento mágico depois dos concertos, que é estares no dia todos nesta vida de carro, viagens e logística, andares nervoso e dares o concerto. Acabas, sais para a rua e tens um minuto onde ficas “eish, estou em Coimbra, ou em Aveiro, e acabei de dar um concerto”. Depois voltas a ti, mas essa adrenalina é incrível. O próximo álbum vai ser sobre esse momento e só vai ter um minuto.

 

MDX – Quando fecham os olhos e se põem a sonhar acordados, onde que se imaginam a tocar? 

Luís – O Guilherme tem uma resposta muito concreta para isso.

Gui – Antes de pensar que estas músicas nos iam permitir dar um concerto sequer fora de Lisboa, brincava com eles e dizia que podíamos fechar a banda quando tocássemos no Primavera de Barcelona e no Pitchfork Music Festival em Chicago. Curiosamente, são dois sítios, onde nunca iremos tocar, influenciaram um bocado Ditch Days: Chicago por ter…

Crespo – (Interrompe) Escola de Chicago. Comunicação…

Gui – Sim, sociologia, [Robert] Park…

Crespo – Teoria Hipodérmica foi importantíssima para a concepção de Ditch Days.

Gui – Agora a sério, há muitas bandas de lá que têm uma sonoridade como a nossa, muitos sítios e paisagens que fazem no nosso imaginário e pronto, é a Pitchfork, que tem mil bandas de que gostamos e que nos influenciaram. O Primavera cá também, se calhar foi o primeiro sítio onde percebi…

Luís – Qual era a “tua cena”.

Gui – Que é possível ver estas bandas relativamente perto de mim. Não precisas de atravessar o Atlântico para ver Dinosaur Jr. ao vivo e para estar no meio de malta que pensa dessa forma e curte dessas coisas.

Luís – (Dirigindo-se para o Gui) Lembras-te uma vez quando eu estava com aquela panca por Courtney Barnett e disse “só vou para Ditch Days porque é a banda que mais facilmente nos vai meter num palco com ela?”

Rafa – A mim é o Sting.

Gui – E não só isso. Uma tour pelos States há de ter de acontecer, pelo Canadá também…

Luís – Nem que ele vá sozinho!

(risos)

Crespo – Nem que um de nos adoeça e peçamos à Make-a-Wish Foundation para fazer essa digressão.

 

MDX – Última pergunta e esta é particularmente parva. Vi na Internet que vocês apareceram num outdoor em Santa Maria da Feira e começaram a surgir uns zunzuns que vocês se iam candidatar às autárquicas por essa cidade. Qual é a vossa agenda política e como vão conjugar a agenda municipal com a da banda?

Rafa – Fácil, posso responder? Santa Maria da Feira tem feira medieval o ano inteiro, nós estamos a trabalhar nuns sons mais (começa a imitar pobremente instrumentos medievais), e vamos estar o ano todo a facturar. Residência artística de música medieval. Para além disso, não quero estar a spoilar, mas, nós não somos os cabecilhas disto. Nós estamos a representar o nosso chefe… não vou dizer mais do que isto, o primeiro nome dele começa em “Deven” e acaba em “dra”, e o segundo é “Banhart” (risos). Ele talvez se vá candidatar, está a planear há alguns anos, falou connosco e disse “já que lá vão tocar, força”. Esta é a minha resposta, fechei. Agora é o Luís.

Luís – Eu acho que o vogal Rafa disse tudo. Vai ser uma campanha muito assente no digital.

Gui – Vamos fazer videoclips para o partido. Vamos também globalizar um bocado e Santa Maria da Feira vai passar a chamar-se Saint Mary of the Fair.

 

MDX – O passo lógico depois de Lisbon South Bay.

Rafa – E vai ter um aeroporto. Para o pessoal ir directo à feira medieval.

Gui – E para ir directo também ao Primavera de Barcelona.

Rafa – Vai haver transfers a noite inteira. Vou só largar isto, não é promessa, é sugestão.

 

MDX – Mas sempre para o Primavera? Então vão assegurar que o festival também vai durar o ano todo?

Luís – Em Saint Mary of the Fair vai ser Primavera o ano inteiro.

(risos)

Gui – Sabes no filme dos Simpsons, quando eles constroem aquela cápsula? Ou no Truman Show. Nós vamos construir uma igual para controlar Saint Mary of the Fair como eles controlam Springfield. E só vai dar para virar à esquerda.

Luís – Liquid Springsfield. Isto tudo só está a acontecer porque nós estamos um bocado insatisfeitos com a programação cultural de Santa Maria da Feira. Tivemos lá nem uma semana e estavam a desperdiçar o cineteatro com Ditch Days. Os fundos não estão a ser bem utilizados!

(risos)

Gui – Depois de ganharmos… vamos ter muita coisa.

Luís – “Muita coisa para Saint Mary of the Fair!”

Gui – “Make Saint Mary of the Fair great again!”

 

 

Entrevista – António Moura dos Santos
Fotografia – Nuno Cruz